A ORFANDADE DAS FOTOS

Qual a serventia de uma foto sem lembranças? De que valem aqueles rostos fotografados de um instante que não existe mais? Rostos desaparecidos da vida cujos olhares ressuscitavam o burburinho hoje silenciado pela distância da memória. De que servem estes rostos e estas fotos se elas não foram feitas para os mortos? Qual vivo se interessa pelos vestígios domésticos e corriqueiros do cotidiano murcho de uma geração remota? Porém elas ainda resistem empoeiradas em meio ao mofo dos fundos das gavetas. Quantas caixas de sapato não guardam resíduos de memória de um passado desvanecido de quem não existe mais? As caixas velhas de sapatos e o fundo das gavetas são o cemitério onde estão sepultados o que deixou de existir de quem deixou de existir. Triste é o destino das fotografias de um morto.

As fotos de um morto não me dizem nada. De nada sei o que sentia, pensava ou sonhava. Instantâneos de uma vida que não vivi, de juventudes e alegrias que não foram minhas, imagens indizíveis de migalhas de tempo em que eu não estava lá. Tudo é tão mudo e inerte nas fotos sem donos: fragmentos inanimados de uma vida invisível pelo esquecimento. São gravuras que só têm significado em função da vida daqueles que ali estão. As fotos sem o seu senhor são espectros que recusam deixar um mundo que não mais lhes pertence. Se essas fotos exalassem o aroma das flores teriam o odor dos cravos.

Fotos assim tão órfãs não trazem a dor da saudade ou a crueldade do rememorar da perda. São ocas e fúteis. Não se pode sentir a brisa dos ventos entre o assanhar dos cabelos nem o brilhar da paisagem nas retinas. De que lá sei eu daqueles abraços cujas mãos não se tocam mais, ou dos amores rompidos no chegar das horas posteriores? Ali devem ter desejos frustrados e anseios sumidos. Sorrisos que depois viraram lágrimas, e olhares que olham para quem não lhes olham mais.

Rostos opacos e obscuros. Semblantes gélidos e inanimados. Gestos petrificados. Flagrantes proscritos e extintos. Segredos desaparecidos para sempre, permanentemente. Por que, então, eles continuam ali a nos desafiar a eternidade com o registro desafiante de sua imutável finitude? Para que servem os retratos depois que vem a morte e o fim de tudo? Deveriam evaporar no exato segundo do falecer de seus senhorios. Não ficariam assim inúteis e não seriam apenas somente fotos.

Temo o triste destino das minhas fotos. Daquele menino de ondulados cabelos ainda louros salpicados de laquê, posando com um olhar distante como quem assustado olha além da infância. Só eu sei daquele menino e de suas confidências e de todos seus esconderijos e mistérios. Só eu sei e ninguém mais. O que será dele naquele retrato quando eu não mais viver? Morrerá o menino comigo, restando a foto que nenhuma pessoa mais olhará.

Joaquim Cesário de Mello

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 27/01/2022
Reeditado em 27/01/2022
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