AO MESTRE COM CARINHO
A minha, assim considerada, pior transgressão de adolescente, lá pelos idos do ano 1982, não foi bem uma transgressão. Mas sim um lastimável equívoco de meus pais, por considerar deste modo um atraso extemporâneo no meu horário de volta para casa das aulas da manhã, naquele terceiro ano de pré vestibular.
Porque demoramos, eu e um grupinho de amigos, conversando ao final da aula de Literatura com aquele que era considerado unanimemente o melhor professor do Colégio IBE: o Altair, professor de Literatura Brasileira.
Hoje, aos 57 anos, lembro dele ainda com terna gratidão, como se tudo tivesse acontecido ontem. Era um negro bonito e de personalidade marcante - mas, para além das aulas sensacionais de Literatura, que suscitavam debates com inesgotável enriquecimento cultural para os alunos sempre inquietos e sedentos por informações, de acréscimo ainda contávamos com o enriquecimento espiritual, adquirido como privilégio extra da lucidez daquele docente humanista, um Rosacruz.
Para quem desconhece, a Antiga e Mística Ordem Rosacruz, Amorc, remonta à antiguidade egípcia, e teve como seu primeiro Grande Mestre o Faraó Akhenaton. É uma Organização Mística e Filosófica sem fins lucrativos, que visa o aperfeiçoamento moral e espiritual humano.
Isto é apenas um adendo. Porque o professor Altair, competentíssimo, primava, com prioridade, pelo seu desempenho como docente na área em que lecionava naquele curso de nível médio.
Mas como, se bem me lembro, carregava no pescoço um belo cordão com o distintivo da Ordem, naturalmente isto acarretava que fora do horário da aula aqueles alunos / admiradores que, por índole própria ou tendência familiar, se afinizavam aos temas místicos, o procurassem para conversar a respeito, no que ele sempre os atendia com gentileza e amizade por todos.
Pois foi justo o que, naquele final de manhã, me perdeu. Porque, de família Kardecista, e já inclinada espontaneamente aos temas espiritualistas, e ademais amiga de um DeMolay e namorada de um candidato à Ordem, devo ter ultrapassado de uma meia hora a volta para casa, entretida num daqueles diálogos de grupo deliciosos com o professor.
E mesmo que, conscienciosa, tivesse me preocupado em descer até o famoso "orelhão", telefone público da época, para prevenir meus pais, aquilo de nada me adiantou.
Foi pior!
No telefone mesmo, zelosos da filha única adolescente de quem supuseram estrepolias, na certa por ter um namorado na turma, e ainda que de natureza pacata, me desconjuntaram com uma esculhambação, e com ameaças cujo resultado foi me fazer desabar no choro.
Corri de volta para a sala e, transtornada, diante do professor gentil que nada comentou, apesar de certamente ter se dado conta de algo anormal se passando, me desabalei rua afora, acompanhada do rapazinho com quem namorava, esbaforida. Só para chegar em casa, afinal, e enfrentar outra tempestade de reprimendas pelo atraso cujas razões se recusaram a aceitar como justificativa.
E me recordo, de quebra, que o fato de ser o professor Rosacruz, algo nobre e digno da ótica humana, mas que, em absoluto, desconheciam, ainda provocou em meu pai uma preocupação extra. Talvez por deduzir tratar-se de alguma seita ameaçadora para onde o professor poderia estar recrutando acólitos!
Só a compreensão vinda com a passagem de muitos anos desfez no espírito dele este equívoco. Especialmente, por ter ele também se voltado para o Kardecismo, e por ter eu mesma, já adulta, me tornado também Rosacruz. Assim como o rapazinho, que o passar do tempo levou para outros destinos, e o nosso amigo em comum, excelente ser humano, que entrou para as fileiras da Maçonaria.
Todo este prequel eu faço, nesta crônica, por ímpeto de gratidão àquele excelente professor - o Altair, de quem me restou somente a página de recordação, na foto acima deste texto - escrita por ele no meu caderninho de despedidas de fim de ano de amigos e professores, muito em moda naquela época. Justo no terceiro ano do nível médio, ano emblemático, que marca nas vidas dos adolescentes uma guinada brusca para destinos desconhecidos que, muito frequentemente, separa a todos para sempre!
O querido mestre e frater - hoje posso chama-lo respeitosamente assim - também desapareceu nos véus dos tempos, após nos presentear com a excelência da sua docência e com os melhores momentos de convivência em aulas que não gostavamos quando chegavam ao fim.
Ficaram eternizadas as lembranças de suas brincadeiras eventuais, quando comentava comigo que eu nunca "repetia a mesma roupa" quando assistia às suas aulas. O que era mesmo um hábito meu, nas idas diárias ao Colégio, na rua Dias da Cruz, bairro do Méier no Rio de Janeiro, onde vivi meus melhores momentos de estudante. E da gravação da entrevista de grupo no trabalho de pesquisa, com o saudoso e brilhante Carlos Drummond de Andrade, com que o presenteamos ao final do ano, em sinal de reconhecimento.
Mas, - principal e pessoalmente - a página acima, do meu caderninho de memórias de 1982, onde resta a sua despedida inspirada e poética.
Às vezes lamento a passagem rápida do tempo, que leva como ventania, para sempre, momentos e pessoas preciosas.
Lamento, volta e meia, quando releio este caderninho, não ter podido reencontrar aquele nosso professor Altair. Para agradecer devidamente pelas suas excelentes aulas.
Pela sua dedicatória.
E para conversarmos, tantos anos depois, como frater e soror, e de certa forma confirmar a minha suspeita de que, nesta dedicatória, de algum modo ele me reconfortou pelo episódio do mal entendido envolvendo os meus pais.
Paz Profunda, mestre - frater Altair!