Eu te quebro na saída
Rememorar a infância é sempre um ato nostálgico, um tanto romantizado também, haja vista que em alguns momentos a puerícia podia assemelhar-se a um verdadeiro campo de batalha, com os fedelhos esgrimindo por mera ignobilidade. Afinal, às vezes, não importa o quanto hesite, no fim precisará prescindir a pacatez e lutar com todas as forças, como se estivesse em uma disputa pela vida ou, pelo menos, penosamente presumindo tamanha baboseira.
A reminiscência remete a bela Alexandra. Embora haja controvérsias, ainda hoje a considero a garota mais bonita da turma, naquela época a mais exuberante de toda escola. Não tinha traços tão chamativos, era uma beleza mais natural, pura, até cristalina, se possível for. Adorava mirar o modo como ela tocava seus cabelos, castanhos não exatamente lisos, mas extremamente sedosos. Tateá-los era como se estivesse tomado um punhado de algodão, composto por mechas tênues e desmedidas, muito delicadas e assim ficava a vislumbrar, pasmado, o modo como pareciam serpentear no meio e finalmente ondulavam quando atingiam a finitude.
De modo repentino, lembro bem quando Alexandra olhava para traz e me flagrava fitando o mar de fios amarronzados. Tinha apenas onze anos e ainda recordo a sensação de ser alvejado pelo seu singelo sorriso, nada espalhafatoso, carregado até por uma dose de ironia, a bela tinha plena consciência de exercer poder sobre mim. Apesar da tenra idade, as garotas parecem despertar, desde muito cedo, certo sexto sentido para essas coisas.
O terceiro elemento da rememoração era Vladimir. A maior parte da turma o chamava de Conde Vladimir Polanski. Como achava um nome meio complicado de pronunciar, possuía predileção pela alcunha de Conde Vlad, era mais rápido e direto e o bom garoto não se importava nem um pouco. Com o pequeno soberano não havia tempo ruim, as meninas o adoravam não apenas pelo porte físico mais atlético (considerando ser apenas uma criança) e sim pela natureza desinibida, jovem cavalheiro de invulgar carisma, atencioso, e até culto considerando a idade. Possuía repertório variado, sabia conversar sobre futebol, automobilismo e a despeito de não figurar como melhor aluno da turma, ostentava notas invejáveis. Também esbanjava certo conhecimento sobre música, destacando-se pelo gosto eclético, além de um devorador inveterado de romances e revistas.
Não vou dizer que o senhorio de primeira ordem era um pouco do que eu, um garoto mais contido, necessariamente gostaria de ser. Não me importaria de ver meu lado sorumbático se dizimar, absorvendo um pouco da atratividade do Vlad, ou quem sabe, não precisar inflamar os neurônios, evocando todas as forças mentais, para manter meros cinco minutos de bate-papo atrativo com as garotas. Se tratando da bela Alexandra, meu recorde deve ter sido não mais de 180 segundos, embora credite à timidez o desempenho insatisfatório.
Certo dia, uma sexta-feira, enfim a chegada do último horário. Talvez estivéssemos extenuados. Era para ser um dia qualquer, o prenúncio de um divertido fim de semana, mas simplesmente não foi. Aguardando a chegada do professor, a maior parte dos alunos já ocupavam as carteiras, inclusive também não titubeei em tomar meu lugar e aproveitar os átimos para fitar Alexandra, incrivelmente venusta naquela manhã, ou a percepção era fruto de certa tendência ao exagero, impulsionado pelo cruel destino a nos impor distância pelos próximos dois dias.
Não sei por que, mas naquele dia a jovem musa virou-se para traz mais rápido, permaneceu mais tempo nessa condição quando nossos olhares se cruzaram, o sorriso formava-se em suas feições, parecendo ainda mais opulento e a cena digna de uma poesia lírica acabou defenestrada por um forte sonido, seguido por uma dor excruciante nas costas. O incômodo grassava na mesma medida em que uma enxurrada de risos reverberava, vinda de todas as direções, inclusive por parte da Alexandra. Isso me alarmava, suscitando mais inquietude.
Enquanto as gargalhavas ecoavam pela sala, notei uma folha de caderno planando até encontrar morada no chão. O papel, em letras garrafais, estampava os dizeres: ME BATA!
- Desculpa Rogério, mas tive que atender ao seu pedido – disse o enlevado Conde Vlad, fazendo jorrar uma nova sessão de risos.
- Na próxima vez, você bate na cadela da sua mãe – respondi enfurecido, ainda sentindo as costas latejando por conta do tabefe. Esperava por uma nova rodada de risos, ao invés disso o clima era taciturno. O vampiro infantojuvenil aproximava-se a passos trôpegos, com semblante extremamente carrancudo e eu sabia a razão.
- É melhor retirar o que disse, ou eu... – Vladimir parecia um tanto aturdido, como se estivesse estupefato pelo rumo tomado com uma brincadeira um tanto singela, acarretando em uma reação tão ignóbil. O bom Vlad nunca dera vazão a uma fachada tão agressiva e para reforçar tinha também a feição tão sisuda, nunca antes vista. Em um gesto rápido, fechou a mão esquerda sobre a gola da minha camisa, parecia conter-se para não desferir um soco. – Vamos seu animal asqueroso, repete o que você disse, repete?
O punho direito agora estava armado, pronto para atirar. O rosto do Vlad emanava ainda mais odiosidade.
- Não vou repetir coisa alguma – respondi, sem titubear.
- Muito bem! – Vlad soltou minha camisa, sugerindo ter desarmado o gatilho, por havendo baixado a mão direita, anteriormente pronta para atingir minha face, como um meteoro cada vez mais perto de se chocar com a Terra. Deu alguns passos para traz, tentando espairecer, retomando gradativamente a serenidade.
- Eu também errei em bater em você. Se me pedir desculpas, encerramos!
O Conde Vlad mantinha-se de cabeça baixa, tentando conter a fúria ainda a ladeá-lo.
- Então cara, estou aguardando, cadê seu pedido de desculpas? Eu errei, mas nada a ver você colocar minha mãe no meio.
- Eu não vou te pedir desculpas – respondi, agora encarrando o olhar odioso do amigo.
- Cara! Minha mãe, minha mãe morreu cara! Como você pode...
- Eu não lembrava. Estava aqui quieto, depois do tabefe que me deu... Eu me recuso!
- Não pode estar falando sério, cara!
- Vá pro seu canto e me deixa em paz. Minhas costas estão doendo ainda!
- Nada disso! Outras coisas podem passar a doer. Te dei uma chance. Agora não tem mais perdão. Eu te quebro na saída! – Ameaçou o Vlad com os olhos marejados, retornando para seu lugar, o professor acabara de adentrar a sala sem idear as circunstâncias do episódio.
Os minutos seguintes de aula fizeram o sangue arrefecer, sucumbindo a adrenalina. Não havia sentido algum naquela animosidade. Vlad era um bom sujeito e aceitaria minhas desculpas. Estava decidido, não haveria duelo nenhum. O sinal ressoou, era hora de voltar para casa. Segui meu caminho logo após juntar livros, cadernos e acondicioná-los na mochila. O novo desafeto não estava mais na sala, seguramente percebeu a estupidez em torno do entrevero e optou por esfriar a cabeça. A mais sábia atitude, por isso pretendia fazer o mesmo.
Ledo engano! Ao alcançar o pátio do colégio, estranhamente pouco povoado, lá estava o Conde Vlad à minha espreita. O pedido de desculpas agora estaria à disposição e por Deus, tinha fé em ser aceito pelo bom amigo. Vladimir queria atingir logo o desfecho, mostrou ser daqueles que vai direto ao ponto:
- É sua última chance de retirar tudo o que disse e se desculpar! – Como ratos ocultados nos espaços mais recônditos, vários garotos passaram a se concentrar no pátio, mais precisamente formando uma espécie de círculo ao nosso redor.
- Rogério, cara, o tapão nem foi tão forte assim! Pede desculpas de uma vez e vamos acabar isso, sem show – frisou outro colega, com tom claramente conciliador, escolhendo bem as palavras como se estivesse evitando que pudesse me sentir pressionado. Estava pronto para oferecer minhas sinceras lamentações, talvez com direito a um breve discurso, dizer até que me envergonhava da atitude infeliz. Tudo estava devidamente ensaiado, quando percebi, entre a plateia, a presença de um membro honorável.
Alexandra estava lá, vigilante a todos os detalhes do entrevero. Lembrei que ela sorria para mim quando subitamente fui acometido pelo safanão. Agora, seria justo vê-la contemplar minhas súplicas, invocando pelo perdão a uma reação espontaneamente instintiva? Não matei a mãe de ninguém e tampouco minhas sinceras desculpas a trará de volta. Os olhares absortos da garota indicavam temporária prisão a um transe semelhante à maneira um tanto desvairada a qual ficava cravando as madeixas moscadas, torcendo para que se virasse, permitindo por meros segundos espiar as notáveis maçãs rosadas estampadas em seu rosto.
Tinha sido um dia tranquilo e forças ocultas quiseram fazer Alexandra conhecer meus outros atributos, não me resumindo a um garoto desmilinguido e acanhado, conformado apenas em encovar as sombras para melhor observá-la sem se deixar notar. Em vez da humilhação, iria espraiar a coragem, o lado mais armífero, mesmo pagando o preço de uma grande amizade. Iria enfrentar Vlad, lutar com todas as forças para mostrar que, às vezes, um simples plebeu pode derrotar um dignitário. Daria tudo de mim, seria o melhor caçador de vampiros existente naquele colégio.
Minha força era içada pela certeza: Vlad até podia ser mais atlético, como vampiro detinha força descomunal, mas sua motivação se resumia a uma mãe a sete palmos do chão, enquanto eu lutava pelo reconhecimento do grande amor da minha vida. Não podia sucumbir à amizade, seria como tivesse apostando minha vida, não pereceria diante do sugador de sangue. A tirania do vampirão estava fadada ao fenecimento.
- Pela última vez, peça... – Já até sabia qual seria o texto, a resposta veio em forma de um soco certeiro. O bom Vlad estava impassível, como se não esperasse por aquela atitude acintosa.
- Vamos ver quem vai quebrar quem! – Brigas sempre foi um bom momento para frases de impacto. Impelido pelo ódio, passei a atacar o oponente com todas as minhas forças. Estranhamente, o vampiro não revidava. Com os olhos serrados, movendo-se de um lado a outro como se ensaiasse passos de alguma dança macabra, limitava-se a proteger a cabeça e o rosto com as duas mãos.
Vlad era rápido e sua defesa parecia quase instransponível. Logo, iria acabar combalido pelo esforço, seria impossível manter o ritmo por tanto tempo. Na certa havia articulado uma estratégia, inspirada no estratagema de Rocky Balboa no terceiro filme da saga e pretendia sorver todo meu sangue assim que ficasse exaurido. Como não podia perder, não com a apoteótica batalha sendo reproduzida pelos atentos olhos de Alexandra, uma nova e derradeira força brotou não se sabe exatamente de onde. O Conde Vlad, com os braços carminados, cedia à sucessão de golpes.
A chance de trunfo me deixou ainda mais tresloucado e então passei a acertar o adversário com força na cabeça, nuca, várias partes do rosto... Não sabia mais pelo que brigava. Via-me inteiramente dominado pela estranha lascividade em exprimir meu lado mais violento. E assim seguiria, se outros colegas não tivessem se metido entre nós, apartando o confronto.
Com as mãos fixadas sobre a nuca, diversos gestos denunciavam acometimento por muita dor. O antes imponente Conde Vlad tomava forma de uma caricatura mal feita, como uma imitação barata, revelando-se um morceguinho que teve as asas talhadas. Confiante, tentava, mais uma vez, ir de encontro ao oponente, que em momento algum se dispôs a digladiar. Repousava sobre o assoalho, encostado na parede, com o rosto rubro. Finalmente percebi que o confronto há tempos cessou, mas as cenas gratuitas de violência foram insuficientes para expurgar toda a ira.
- Agora, já pode chorar no túmulo da mamãezinha – comentei, ainda sem conseguir acreditar realmente ter dito isso. Então, chega de perder tempo com o vampiro derrotado. Onde estava Alexandra? Ansiava pelo seu sorriso, sem dúvida a menina mais bonita de toda escola se sentiria protegida ao meu lado, afinal era um leão destemido. Entre os estrépitos, podia ouvir um sussurro similar ao choro. O Conde Vlad irrompia em lágrimas silenciosas, muito mais pela insensatez de palavras cruéis, a dor imposta por tantos murros.
- Não fica assim, Vlad. Esse Rogério não passa de um idiota. Não devia ter perdido tempo com ele, é apenas um garoto tolo e mimado... – Eu reconhecia aquela voz, era Alexandra, a minha Alexandra, ali acalentando meu oponente, consolando um derrotado.
- O que você está falando... eu, eu... Estava quieto.... – Alexandra sequer me respondeu. Limitou-se a ajudar o choroso Vlad a recolher seus materiais. Os dois sentaram-se juntos a poucos metros, enquanto os demais dispersavam.
Não fleumático a dor, ali permaneci por mais um tempo. Como sabia, o espetáculo chegou ao fim, apesar disso era difícil tomar coragem para pegar a mochila e seguir meu tortuoso caminho. Preferi continuar lá, por mais duro que fosse observando a mais bela garota reconfortar meu oponente, que em momento algum quis embarcar na briga, apenas ansiava pelo justo pedido de desculpas. Por um momento, antes de enfim partir vestido com a minha vergonha, Vlad passou a me encarar por meros instantes, exibindo um semblante nada caliginoso, adverso ao rancor, como se estivesse sentindo pena. Não precisava ser um vampiro, ter vivido milhares de anos para saber quem realmente acabou quebrado na saída.