Sobre pés
Quando criança me foi fácil à tarefa de amarrar os cadarços. Eu tinha botas ortopédicas. Engraçadas tanto no nome quanto no modelo. Clássicas em seu servir: corrigir deficiências congênitas dos membros inferiores – ou seja – pés tortos.
Apenas não lembro deles desviados. Desguiados. Contraventores do sistema do que seriam pés para os padrões da sociedade. Lembro apenas das botas. Eram azuis. Botas azuis se enquadram? No mínimo seria bizarro.
Depois das botas, vieram outros calçados. Mas só guardo na memória, os que me convém. Os que senti prazer em calçar. Os que de tão macios, faziam-me sentir andar nas nuvens. Mas alguém sabe como é pisar em nuvens? Melhor, então, trocar por algodão.
Os sapatos fazem isso: firma-nos no chão; fixam o sentido de realidade. Entre o solo e o solado, só existe o atrito. E é melhor não escorregar!
Eu escorreguei... Um dia, acordei sonolento. Com pressa, ao sair, caminhando pelas ruas, senti que havia algo de estranho. É do ser humano não olhar para baixo – daí vêm as quedas – e não me percebi que o aperto não vinha de cima e sim do outro extremo.
Parei e tentei ser humilde comigo, querendo olhar para o que não dava vazão: meus pés. Não consegui! Para que perder tempo olhando meus pés? As botas azuis já não haviam de ter sarado tudo o que me era posto como castigo no nascimento?
O que me importava era a cabeça. Eu não pensava com os pés. De tão insolente que fui, permiti-me, primeiro cogitar uma dor de cabeça a dor nos pés.
Que embaraço! Senti vergonha. Havia calçado – pensei – os sapatos invertidos. Meus pés doíam. Ainda faltava muito para chegar aonde haveria. Não iria trocar os sapatos em plena rua. Preferi continuar. Em um passo falso, caí no cimento da calçada.
Ralei as mãos, ao tentar amortecer o impacto da queda. Continuei, até que em outro tropeço, caí por sobre uma moça. Seu companheiro, furioso, levou-me em solavancos por um quarteirão. Fui arrastado até o meio da rua e fui atropelado... Por uma bicicleta.
Cheguei ao meu destino. Exausto, ralado, agredido, ensangüentado. Mas cheguei! Sentei. Tirei os sapatos com dificuldade. Olhei... Olhei de novo... E olhei. Senti vontade de chorar e de rir. A tristeza se misturou à euforia, quando do absurdo que vira. E o absurdo me fez ver o ridículo. E realizei que o ridículo era eu. E que haver algo de errado comigo, era um tremendo absurdo.
Havia descoberto algo: não eram os sapatos que estavam invertidos. Eram meus pés que estavam trocados.