COMO UM PASSARINHO...

Na internet se encontram receitas para tudo, ou quase. Não pude evitar o trocadilho infame quando busquei a receita de “overnight oat”: aveia dormida, ou ainda amanhecida. Um desjejum ou lanche saudável e rápido para quem tem pressa e/ou preguiça. O preparo é simples como deviam ser as coisas boas da vida: aveia e um líquido (leite ou leite vegetal, ou ainda iogurte). A mistura passa a noite na geladeira e, pela manhã, acrescentam-se frutas frescas, castanhas, cacau, mel ou melado: aquilo que sua imaginação e gula sugerirem. Uma delícia, fácil de fazer e de consumir, não requer prática nem tampouco habilidade. Chegando aos 63, sou mais ou menos como “a véia dormida”, uma senhorinha de cabeleira branca, sono desandado e muita pressa de viver (às vezes muita preguiça também).

Ando cansada. Não pela idade, nem pelo ofício: amo o que faço e sempre fiz com carinho, mas ando cansada. Tenho colhido dos falares das pessoas que atendo, não receitas, mas dicas de como alimentar essa vida. São histórias deliciosas, mesmo quando a dor é muita e caminho em silêncio, lado a lado, porque só me cabe ouvir. Nada que eu diga transforma o dito em dor menor. Mas trocamos, emprestamos nosso colo, nossos braços e até nosso útero, onde se gestam significados novos ou forças impensadas para a travessia. Toda dor é urgente e ainda que seja necessário ter paciência, perder tempo não se admite. Se pensarmos com carinho, a receita é simples: junta-se uma fonte de energia, hidratação (porque a vida anda mesmo muito seca) e, depois do tempo de descanso e assimilação, temperos que dão sabor. Assim a vida, assim a aveia e a véia. Sessenta e três me parecem poucos quando imagino o que ainda gostaria de fazer, e por isso tenho pressa. Mas, às vezes, pesam toneladas e morro de preguiça. Me cansa ter que repetir o que me faz feliz, mas não pretendo abrir mão de nada, ou quase. Na verdade, renunciar é inevitável muitas vezes, mas dói menos se a gente sabe o que deseja e o que realmente importa. De quem precisa de pouco ou morre sem fazer alarde, diz-se que come ou que morreu como um passarinho. De frutas e cereais vivem os pássaros. Comem bocados pequenos, voam leves, e enxergam do alto onde querem ou precisam pousar. Preciso de quase nada e a vida me deu muito. Fontes generosas de energia, minha família e meus amigos me animam, mesmo sem dizer nada. Hidrato-me com água, suor e lágrimas. E algum vinho, que eu não sou besta. O tempo passa e assimilo, solidifico, recomponho, desconstruo, refaço. Ouço e ouço a mim mesma. Abro lentamente as asas em voo leve. Apesar de toda a dor, a vida é linda e merece carinho. Obrigada a você que me desejou coisas boas hoje e sempre. Feliz aniversário pra mim!

Sorocaba, 22 de novembro de 2021.

Raquel DPires
Enviado por Raquel DPires em 20/01/2022
Código do texto: T7433449
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.