Gostos e Desgostos

A princípio gosto não se discute. Só que não, o que mais se discute é gosto e se tenta impor seu gosto aos outros. Também reza a lenda que não se deve discutir religião, futebol e política porque é sinônimo de encrenca. Só se for na Terra do Nunca no dia trinta de fevereiro, pois mesmo antes da pandemia já tinham aberto as portas da encrencolândia. Revogaram o politicamente correto e só não insistem em certos temas discriminatórios porque pode dar cadeia. Gente que não dá conta da própria vida metendo o bedelho na vida do vizinho, cobrando coerência das pessoas.

A patrulha do gosto e da opinião alheia acontecia no círculo familiar e entre amigos, mas com a expansão das redes sociais todo mundo se arvora no direito de palpitar nas postagens públicas com ares de superioridade ainda por cima. É aí que entra o salutar bloqueio que é verdadeira bênção, é como se a gente acionasse o assento ejetor da figura indesejada enviando-a à estratosfera com passagem somente de ida. O acirramento da tensão pandêmica fermentou o debate sobre saúde, política e segurança a ponto de azedar relações de décadas, a intolerância foi praticamente normatizada. Poucos tentam relativizar e permitir que o outro pense diferente desde que não seja ofensivo, para ser amigo é quase preciso firmar contrato cheio de cláusulas em três vias e registrar em cartório. E se não aderirmos, nos mandam procurar a nossa turma. Gente, não tem que ser gêmeo univitelino para ser amigo, aliás, gêmeos frequentemente divergem pacas.

O problema às vezes nem é a tolerância, é o abuso, a falta de limites. A gente faz vista grossa e a pessoa vai furando sinais vermelhos até ser defenestrada da nossa vida. Tudo por causa de conflito de gostos e ideologias. Antigamente eu tinha amigos de todo tipo de religião, orientação sexual, etnia, preferência política, posição social, time de futebol e convivíamos todos juntos e misturados nos respeitando. De uns dez anos pra cá começou essa palhaçada. Já ouvi que tenho que usar relógios de certas marcas, gostar de vinhos secos e muito caros (harmonizando com os alimentos, lógico), que só posso ler livros profundos e enigmáticos, ver filmes cult e frequentar somente as peças de teatro dramáticas, nunca comédias, caso pretenda ser uma intelectual. Ai de mim se eu ler best sellers caça-níqueis ou assistir filmes comerciais que passam em qualquer shopping, obrigatoriamente tenho que frequentar o circuito alternativo e hype. Quem disse para eles que quero ser intelectual e ter meus gostos cerceados? Quero é curtir a vida e ser feliz o quanto der.

Acontece que nunca solicitei ajuda de um personal stylist nem guru, quem cria meu estilo sou eu assim como cada um cria o seu e dá para fazer um “pot-pourri” bem agradável (aos meus olhos). Enfim, é uma pena essa afronta à liberdade, mas como dizia a minha avó, só fazem conosco o que permitimos e o bom da maturidade é ter aprendido a dizer “chega” ou “não, obrigada” com um sorriso nos lábios sem que implique em cinismo nem provocação. O gosto individual nunca deve causar desgosto, e se causar, é sinal de que há algo de podre no reino da Dinamarca. Puro Hamlet do atemporal Shakespeare.