Sócrates e a turba da Justiça

Ao assistir um noticiário na tv, observei ali, como se fosse um escritor, algo que não estava ali, mas poderia ser. Não lembro a causo, ou seja, qual era o caso que havia gerado aquele efeito. E o efeito era uma turba barulhenta e revoltada em frente a uma delegacia; rostos anônimos que gritavam por si e também ecoavam o sentimento de vários outros que tomaram conhecimento do caso. Os repórteres mal conseguiam realizar seu trabalho, e alguns pareciam mesmo abandonar a pretensa imparcialidade que ainda querem nos fazer acreditar que este ofício possua. E aquele mar de gente, ressacado e temeroso, aguardava a chegada de um homem, ou, para simplificar e aparar qualquer possibilidade de interpretação, um criminoso.

Como já disse, não lembro qual era o caso, só me ative mesmo à turba, que clamava "Justiça!"; bradava "Justiça!"; vociferava "Justiça!". Foi aí que eu vi, não com os olhos, emergindo da multidão, um homem incomum. Se trajava com vestes de outros tempos que mais pareciam simples panos — na verdade, eu diria, para ser mais exato, que ele não se vestia, mas se cobria—; tinha a barba longa; uma face sisuda e gestos dão comedidos que até parecia que seu corpo temia desobedecer ou extrapolar as ordens de sua mente ou alma. Ele caminhou e pôs-se no centro daquela tempestade. Como não se pode gritar e ouvir ao mesmo tempo, os trovões logo foram se calando, pois o ancião levantou a mão esquerda na altura da cabeça com o dedo indicador apontado para cima, como se estivesse prestes a falar. E assim sucedeu.

— Vós que clamais por Justiça, lembro-vos: para que ela seja aplicada, assim como quereis, é necessário que os executores constituídos saibam exatamente do que se trata essa tal Justiça. O que, de certo, não é um problema, já que vós todos, que a tem na ponta da língua, devem, com toda certeza, conhecê-la e descrevê-la minuciosamente.

Todos, inclusive eu, ficaram embasbacados tanto com as palavras dele como com o seu modo assertivo de falar. Mas um daqueles que estava na multidão, compreendendo exatamente o que ele estava tentando fazer, respondeu-lhe, não tão cortês como ele:

— Vá a merda!

— É isso mesmo. O que queremos é justiça!

— Ele tem que pagar o que fez!

— Justiça! Justiça!

— Justiça! Justiça! Justiça!

...

Nisso o velho levantou a mão mais uma vez, repetindo o gesto de antes, no que todos repetiram também o silêncio.

— Vejo que são de fato todos sábios e não tem tempo para gente confusa como eu. Mas peço a vós, não mais pelos executores da Justiça, que hão de ser tão argutos e provavelmente mais ainda seu povo, mas por mim; peço agora por este velho tolo e sem discernimento. Dizei-me um de vós o que é a Justiça que tanto convocam, e eu ficarei satisfeito.

Então uma pessoa se adiantou e quis acabar logo com aquele falatório inútil:

— Ora, é claro que a justiça, nesse caso, é prender o homem por pelo menos uns dez anos.

— O quê? só dez anos. ele tem que apodrecer na cadeia!

— Vocês são o quê, santos? ele tem que morrem. Injeção letal para ele.

— Que nada, tem que fazer com ele igual ele fez com os outros.

E a discussão entre a multidão ia aumentando, mas antes que ficassem incontrolável, o ancião, vendo que aquilo não se encaminhava para exatamente para o fim que almejava, deu início novamente ao ritual que precedia sua fala, e disse, depois do habitual silêncio:

— Cada um de vós apresentou um modo de aplicar a Justiça nesse caso. Porém, o que eu queria mesmo saber, era da Justiça em si, do seu conceito substancial; aquilo que ele será aqui, em todo o lugar e em todo caso. Você aí por exemplo, que gritavam com tanta convicção, dizei-nos o que é a Justiça.

— Ora, a Justiça é....todo mundo sabe. Todo mundo sabe o que é justo.

— Se é assim, então qualquer um poderia responder, certo? e todas as respostas seriam iguais, pois estaríamos falando de Justiça, correto.

— Acho que sim.

— Então podeis responder à pergunta. O que é a Justiça?

— Posso sim, mas me parece que todos aqui também podem. Então eles que respondam, eu é que não.

Então, já impaciente, o mar revoltou-se novamente:

— Vamos deixar de amolação seu velho rabugento. Se não sabe de nada então vá para uma biblioteca.

— É. Ou então vá pesquisar na internet, que nós temos mais o que fazer.

— Tirem esse otário daí, o criminoso deve estar para chegar.

O ancião mais uma vez ia levantando a mão, com o mesmo gesto solene, mas antes que terminasse o movimento, alguém terminou o movimento de um soco que lhe acertou a nuca. E antes que pudesse sentir a dor respectiva, atingiram-lhe nas costelas, e nas costas, e na face, e nas penas. Ele tentava se defender, mas isso era tão provável quanto se defender dos pingos de chuva em terreno aberto.

Juro que pensei que, antes de ele se ver encharcado, surgiriam alguns a seu favor e lhe dariam a chance de fugir, de confessar que tudo aquilo estava direito e equivocado. Mas nada disso aconteceu, e ele acabou se afogado pelas pancadas das ondas que lhe acertavam. E nessas alturas eu já não sabia se ainda estava assistindo ao noticiário em minha casa ou se já fazia parte da turba; às vezes eu viajo muito quando estou pensando.

Deu-me a impressão também de que a Justiça da qual aquelas pessoas estavam falando era a forma que mais deu certo na nossa civilização: uma espécie de vingança terceirizada e entregue às mãos imparciais do Estado. Mas eu não sei se essa ideia é minha ou vem de algum autor que eu tenha lido. As minhas melhores ideias costumam serem ditas por outros que vieram antes de mim. Que seja, as melhores ideias são aquelas que já foram pensadas. E isso foi eu mesmo que escrevi.

David Ariru
Enviado por David Ariru em 18/01/2022
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