Cartas de Salamanca - Odilon Ribeiro Coutinho
Odilon Ribeiro Coutinho
“A voz firme, a frase dramatizada, os tons e os semitons
melodiados compunham os adereços de uma fala
quase hierática na sua grandeza visionária.”
(Fátima Quintas, escritora, sobre Odilon.)
Não, não posso dizer que fui amigo de Odilon. As circunstâncias de nossas vidas não permitiram. Estivemos juntos, e conversamos, uma meia dúzia de vezes. No entanto, guardo dele a melhor das impressões. Nosso primeiro contato, lembro, foi em 1982. Vivíamos ainda sob o regime militar, ele candidato ao Senado e eu, na euforia dos meus dezessete anos, fazendo parte de um grupo estudantil que integrava aquela campanha.
Em reuniões com a militância, a postura de Odilon destoava das outras lideranças. Ouvia-nos com atenção. Dava importância e entendia as exaltadas intervenções juvenis que afloravam. Além da sólida formação humanista, o tratamento por ele dispensado também estava calcado em sua própria história de vida, pois fora presidente da União dos Estudantes de Pernambuco e, como acadêmico da Faculdade de Direito do Recife, teve intensa participação na luta contra o Estado Novo, sendo preso várias vezes por contestar o então regime antidemocrático.
Também, da mesma campanha de 82, tenho guardado, na memória e retina, um emblemático episódio que, pelo viés cinematográfico, serviria como uma luva para ilustrar um documentário ou um filme acerca de Odilon: Naquela noite, o candidato ao governo, pelo PDS, tinha um jantar com empresários mossoroenses, na então chique e suntuosa ACDP. A coordenação de campanha do PMDB programou uma passeata, com parada estratégica justamente na subida da “ponte velha”. Quem conhece a geografia urbana de Mossoró sabe que, pelas posições referidas, as mobilizações ficariam separadas tão-somente pelo leito do rio (que ainda não era poluído, diga-se de passagem). Odilon foi o orador escolhido, do lado oposicionista. Imaginem a peça de oratória que emergiu daquele improviso. Foi construído, de forma impecável, um paralelo entre os dois cenários. Com uma “ira santa”, gesticulava e mostrava a disparidade existente entre aqueles que estavam a se banquetear com alguns escolhidos, em contraponto com a sua corrente política que valorizava o contato com o povo e, com esse povo, seguia caminhando pelas ruas. Intercalando sua fala com metáforas arrebatadoras, a certa altura, vaticinou:
— Ai de ti, “Nabucodonosor”, porque os seus dias de império estão contados.
Outros tantos pronunciamentos memoráveis são lembrados na trajetória de Odilon. Um, sempre citado por quem teve a oportunidade de ouvi-lo, foi o da histórica convenção do MDB, em 1978, quando Odilon se insurgiu contra o acórdão arquitetado para que o partido apoiasse o candidato ao Senado da Arena. Jurandy Navarro, em uma antologia de oradores do Rio Grande do Norte, resgata dois dos seus importantes discursos.
Em 1986, Odilon foi candidato a deputado federal e não obteve sucesso. Registre-se que ele fora escolhido para participar de uma comissão de notáveis que concebeu um anteprojeto que serviria de parâmetro para a própria Constituinte. Bem, estive com Odilon, após as eleições, e, lamentando o resultado, disse que, para mim, era custoso entender por que o Rio Grande do Norte, em termos eleitorais, era sempre injusto com ele. Odilon aumentou o sorriso, apertando os olhos miúdos, me abraçou, disparando magistralmente:
— Injusto, não... Digamos, apenas, equivocado.
Soube, por uma notinha em jornal, que uma professora da Universidade Federal da Paraíba organizou um livro post mortem com textos de Odilon sobre Gilberto Freyre — de quem foi grande amigo. Estou curioso por lê-lo. Ele está elencado como umas das prioridades quando do meu retorno.
Saudades de Odilon. Saudades de sua oratória potente em defesa das instituições democráticas. De seu exemplo. De sua postura digna. Pessoas como Odilon deixam lacunas imensas e fazem muita falta neste mundo de iniqüidades.
*David de Medeiros Leite é advogado e professor da UERN.