Cartas de Salamanca - Foi bonita a festa, pá
Foi bonita a festa, pá
David de Medeiros Leite
O boa-tarde da moça do pedágio, mesmo carregado do sotaque português, deu-nos a sensação de estarmos em território familiar. Os quatrocentos e poucos quilômetros percorridos, pelas ótimas condições das estradas, passaram rápidos. Chegamos à cidade do Porto no meio de uma bonita e nublada tarde, em que o frio, soprado pelo vento outonal, estava agradavelmente suportável.
Tivemos tempo suficiente para irmos ao supermercado e comprarmos guaraná Antártica, farinha de mandioca e outras cositas brasileiras que temos dificuldades de encontrar em terras espanholas. Além, claro, de algumas garrafas do próprio vinho do Porto. Fizemos um breve passeio pelo centro da cidade e jantamos um delicioso bacalhau. Pronto, já era chegada a hora do show.
O teatro “Coliseu” impressiona muito mais pelo tamanho do que pela beleza arquitetônica. Estava lotado. Chico Buarque entrou arrastando a eterna timidez. Voltei a Cantar, velha canção de Lamartine Babo, serviu de abre-alas e, diga-se de passagem, bem compatível com sua (de Chico) volta aos palcos, depois de considerável período de ausência. Seguiu intercalando músicas novas e antigas. Da nova safra, pra começo de conversa, Ela faz cinema, que traz a indelével marca das geniais sacadas: “Quando ela chora, não sei se é dos olhos para fora”.
O entusiasmo do público me fez recordar do já longínquo 1984, em Natal. Guardo, até hoje, renitente, na memória e retinas, as imagens da Praça Gentil Ferreira, ingurgitada de gente. Bandeiras tremulando, discursos inflamados, importantes políticos do cenário brasileiro: Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Leonel Brizola, entre tantos outros. Todavia, o apogeu daquele comício do movimento “Diretas Já”, foi, sem dúvidas, a participação de Chico Buarque. Quando ele soltou a voz no “apesar de você”, a multidão quase foi ao delírio.
Tentei desvia-me da fumaça e dos efeitos especiais da iluminação que estavam me arrastando para uma descabida emulação entre os dois momentos. Pura catarse, reagi. Devo mesmo deixar de lado essas elucubrações, para prestar atenção nas novidades novas, pois, quando Julinho de Adelaide passa um tempo afastado das ribaltas, volta sempre com pérolas.
Subúrbio é o que poderíamos chamar de politicamente atual. Fala de uma realidade carioca, que não é cantada, nem exaltada. Carioca, aliás, é o título do show. A música tem versos fortes: lá não tem turistas, não sai foto em revistas, lá tem Jesus e está de costas... Fala, Madureira, fala, Meriti, Nova Iguaçu. É, o velho e bom Chico voltou com gosto de gás, pensei. Ode aos ratos, que é uma parceria dele com Edu Lobo, apesar de não ser nova, ressurge acrescida com uma espécie de embolada. Bem diferente. Intrigante, diria.
Extasiados com a estonteante beleza melódica de Futuros Amantes e de Vitrines, achamos que a noite não teria mais nada para superar-se. Ora, ora, ele veio com Bye, Bye, Brasil, e nos carregou, a mim, Vilani, Alexandre e Agostinha, por uma gostosa viagem mambembe pelo distante Brasil... Saudades de roça e sertão foi nocaute.
Bem, ao final, teve aquele característico coro do mais uma e o “menino” de Sérgio Buarque retornou ao palco para brindar os portugueses com a festejada Tanto Mar, com direito, inclusive, a comentário sobre a música e sua contextualização. Foi o ápice. Pensamos que tinha acabado, quando, nesse momento, ele cantou Quem te viu, quem te vê, e nós, cá da cávea, batemos palmas com vontade, fizemos de conta que éramos turistas...