O mito das almas gêmeas

“ O mito é o nada que é tudo

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo."

Fernando Pessoa

O mito é a expressão simbólica de sentimentos inconscientes de um povo. Ele interpreta a realidade, utilizando arquétipos comuns a todos e conta histórias do fabuloso tempo dos Começos. Nascendo da intuição transformada pelas palavras, o mito é infinito em suas revelações do inconsciente coletivo.

Platão relatou muitos dos mitos que conhecemos. Em Fédom, ele anuncia a reencarnação e imortalidade da alma. No Banquete, através das palavras de Aristófanes, poeta grego, ele fala da completude divina do Ser, no Mito do Andrógino. Em várias mitologias, o primeiro ser foi um andrógino, criatura que carregava em si o masculino ( andro) e o feminino ( gine). De acordo com a mitologia, assim o será também o último de nós.

Os andróginos eram seres duplos com duas cabeças, quatro pernas e quatro braços. Poderosos e com força extraordinária, tornaram-se ambiciosos e desafiaram os deuses : construíram uma gigantesca torre até o Monte Olimpo. Irado, Zeus ordenou que fossem divididos em dois, transformando-os em homens e mulheres. Com o tempo, eles esqueceriam o ocorrido, mas carregariam permanentemente a sensação da incompletude de ser. Assim, a saudade da união perfeita renasceria. Desde então, os seres vagueiam infelizes em busca da metade perdida para preencher as lacunas de cada um.

Como o concreto e abstrato, palavras desgastam-se com o uso, perdendo sua função original. “Eu te amo” repetido à exaustão e indiscriminadamente, perdeu o valor de expressar o amor sublime. Do mesmo modo, “almas gêmeas” se desgastou, perdendo parte de sua significância e credibilidade, ao ser usada em demasia, para expressar amores e paixões fugazes, ardores terrenos.

Quando ouvi a expressão pela primeira vez, não gostei. Ela roubava minhas esperanças, fadava-me a ser incompleta até que e SE encontrasse minha metade perdida. Com tanto desencontro pela vida, como cantou Vinicius, o risco de morrer incompleta era enorme.

Hoje sinto calmo langor ao pensar no assunto. Minha alma gêmea não se apresentou, mas o Universo me proporcionou a dádiva do encontro com almas irmãs, almas amigas e almas atraídas por necessidades cármicas. Com elas troco experiências num crescimento pessoal e coletivo. Há que se aceitar o elenco original proposto pelo Criador e, a tantas mãos, escrever o script da própria vida. Faço-me completa na minha dimensão humana, enquanto aguardo o negativo fotográfico de minha alma, que dará a medida da sua dimensão divina.

Gosto de olhar para o céu e imaginar, fantasiando, que, em algum lugar, alguém olha o mesmo céu e, sem imaginar que eu existo, pensa em mim. O encontro fusor há de ocorrer sem temporalidade ou delimitação espacial.

Então serei perfeita: conterei em mim todas as oposições e bastarei a mim mesma. Novamente andrógina.

Fecha-se o ciclo : o encontro do Fim com o Princípio.

Quem quiser que acredite. Eu creio.

“ Não será verdade que cada ciência, no fim das contas, se reduz a um certo tipo de mitologia?” Sigmund Freud.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 19/11/2007
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T742844
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