Canário e um adeus

Antes de partir a mulher começou a ver em Cambaio um diabo sem critério. Ameaçou partir para a casa da mãe. Cambaio zombou, seria devolução. De raiva Helena soltaria o canário antes de sair. Antevia a cara do Cambaio diante da gaiola. Cambaio vazio, pançudo e pasmo. É claro que por traz de todo o juízo crítico precisava continuar com ele. Pelo menos como amigo. Não sabia o que dizer. Suas qualidades eram de um homem de bem. Um perfeito animal para suas noites de ternura. Por outro lado estava enfastiada das grosserias verbais. Estava decidida.

Cansada como se fosse uma borboleta num dia de temporal surgiu no retângulo da porta dizendo: volto hoje para Curral Grande. Lançou o “adeus” quase cifrado e fulminante. Moveu-se como atriz dramática numa cena ensaiada sete vezes. Sabia que Cambaio não era homem de malagourados. Abandonou o canário sem lágrimas no lugar onde estava sem coragem de soltá-lo.

“Vamos saber, cada um com sua vida!”. Foi o que disse até sentir realmente a sombra mortecor da casa vazia. Helena fazia às vezes de mulher conformada. E se conformou. Sem carpir o passado, porém resmungando aqui e ali carregou seus teréns para casa da Mãe novamente. Tomava decisões importantes para o Cambaio. Tinha o segundo grau e ele nem completara o primário.

Dias depois o abandonado fora encontrado em apuros em torno das roupas, dos mantimentos, da desarrumação caótica dos seus movimentos. Queimou a mão aquecendo o leite e quase ligou para pedir socorro na cozinha. Quando uma mulher abandona uma casa transforma o homem em hóspede das suas próprias sombras. A mão ardendo. Lutava internamente para reconciliar o pouco movimento da alma sem desejo. Era-lhe difícil apagar os vestígios da provocante eternidade quebrada numa rápida despedida e seus ensaios.

Em nenhum tempo o bar havia assistido aquele colosso emocionado. Confessou para mestre Mariano que não sabia como lidar com o filme do abandono. Bebeu feito uma cabra. Levaria dias para esquecer a voz de muitos anos.

Sua primeira resolução de abandonado revelava uma face estranha: resolveu também soltar o canário. Apenas aguardava um belo dia de sol. Saltariam os novos dias coloridos além de bons presságios zodiacais. Seus olhos cintilavam com a idéia pela influência do gesto: soltaria o canário e libertaria também sua alma. No dia desejado acordou cedo com ruído de banda marcial nas festividades de rua. Tomou café frio, mordeu o pão dormido indo até a gaiola para agir. Canário, gaiola, galho de limoeiro, canário e liberdade. Mas o canário permaneceu desconfiado. O olhar de Cambaio era outro. Nem de longe lembrava a mirada de Helena com suas mãos finas lhe dedicando alpiste. Canarinho cantador tem espertezas. Desacostumado da rua e tantos anos aprisionados deram-lhe intenções próprias para superfícies restritas. A gaiola com a portinha aberta permanecia. Não saiu. Não partia nem com apito. Parecia se divertir com a muda perplexidade do dono. Continuava o canário com seu cotidiano mimado pulando expeditamente de um poleiro a outro.

Duraram horas o caso do canário conformado. De repente tomou a decisão e foi um verdadeiro sucesso! Que espetáculo! Aquele átomo amarelo e delicado voou até o abacateiro da vizinha fazendo escala no limoeiro. Decerto o trombone retumbante em frente ao portão com o compasso de Aquarela do Brasil movera o interesse musical do canarinho para o galho mais alto. Cambaio estava satisfeito. Ambos ficaram assistindo a manhã colorida em pleno esplendor. Quando a banda passou retornou sem abandonar a gaiola arreganhada.

Resolveu tirar a foto de Helena da sala. O retrato espiava tudo com interesse. Ela com ar de dona da casa piscava para um Cambaio apalermado perto do meio-dia. Um Cambaio vivendo a mesma geometria da casa entre signos fantasiais de dentro para fora e de fora para dentro como o pássaro indesejado.

Ela também sentia sua falta. Precisava continuar Não sabia o que dizer além de amigo. Mas suas qualidades de homem... Um perfeito cavalo para suas noites de ternura... Por outro lado estava enfastiada das grosserias verbais. Decidida. Cansada como uma borboleta ao final da tarde num dia de temporal.