A ROTINA DE PASSAGEM DE ANO
A ROTINA DE PASSAGEM DE ANO
Em minha infância, quando residia em Santo Ângelo – Rio Grande do Sul, ouvi o amanhecer de um novo dia pela primeira vez. Sim, ouvi. Antes de o dia clarear, eu acordei não sei por qual motivo, e presenciei uma sinfonia da natureza da qual não esquecerei jamais. Vou descrever o que ouvi durante uns dez minutos, que me pareceram intermináveis. Tudo começou com o cantar de um galo próximo de minha casa. Após umas três ou quatro espaçadas repetições, outro bípede de mesma espécie imitou ou respondeu ao cacarejo de seu semelhante, que, passados uns instantes, voltou a emitir seu cumprimento ao novo dia. Eu tinha uns cinco ou seis anos e já ouvira que os galos cantavam ao raiar do dia. Busquei o céu com meus olhos e notei que a noite já não era tão escura e, muito lentamente, uma tímida claridade iniciou a se firmar. A partir de então, ocorreu a mágica que ouvi. Tudo começou com os galos acima referidos e uma infinidade de outros galináceos repetirem a exaustão o cacarejar de bom dia, cada um deles transmitindo a nítida impressão que era o primeiro a cumprimentar o novo dia. Ao longe, ouviu-se um suave muuu de um bovino, um latido, um miado, um bé de cabrito, pios de pássaros. Cada uma dessas vozes animais se se multiplicou, à semelhança do ocorrido com os galos e, em instantes, toda a fauna da região emitia seu cumprimento individual ao novo dia. Como se cada galo, galinha, pintinho, boi, vaca, bezerro, cavalo, égua, potrinho, porco, porca, leitão, cachorro, cadela, cachorrinho, gato, gata, gatinho, cabrito, ovelhas, cordeiros, etc., tivesse a divina missão de avisar que um novo dia se anunciava e aquela incrível mistura de sons animais alertasse a todos, inclusive aos dorminhocos humanos, que uma nova oportunidade de fazer as coisas certas, de corrigir os erros, de perdoar as ofensas, de confiar no novo dia estava se iniciando. Acima de tudo, era o som da Esperança, Otimismo, da Positividade, do Recomeço. E eu fiquei ali ao lado do portão de casa, extasiado, estático, com medo de aquilo acabar, o que seria inevitável. Mais alguns minutos e, quando o dia clareara, o som foi diminuindo como nessas canções que o cantor vai baixando a voz. Mas percebi que, ao passo que os animais próximos de mim se calavam, eu ouvia ao longe cantos de animais das cidades próximas, como tivessem se contaminado. Nessa longínqua experiência, criei a certeza que tudo pode se acertar, consertar, inovar. Fechei o portão e entrei.
Paulo Miorim, 30/12/2021