Loterias Caixa e a morte na fila

Enquanto eu olhava despretensiosamente para o canto superior da lotérica, onde placas, anúncios de jogo e uma tela promocional dividiam espaço, os sons da Avenida movimentada, dos murmúrios do povo e da chuva torrencial que caía sobre a cidade enchiam meus ouvidos. Por um breve momento havia pausado a música em meus fones e me deparei com a realidade: foi um choque. Mas não um choque extraordinário, um choque com as coisas comuns. O que é mais comum que a fila de uma loteria da Caixa perto da data do vencimento das contas, em um dia de chuva e caos urbano?

Em algum momento, eu passei de adolescente a alguém a quem diziam: “moça, sua vez aí, ó”. E com o boleto na mão, dirigi-me ao lugar do atendimento e suspirei fundo - não de desgosto, mas porque notei que a minha vida, no fim das contas, é bastante cheia dessas coisas. Minhas idas à lotérica, bancos, supermercados e outros lugares comuns andam bem mais frequentes que festas, celebrações e momentos importantíssimos que um dia idealizei, como a formatura na faculdade. Passaria muito tempo no trabalho, aliás. E ninguém nunca sonha com o futuro dizendo: “vou precisar ir pagar as contas dia 10; vou esquecer de comprar o pó de café que acabou; vou esperar vinte minutos pelo ônibus; vou precisar de um remédio de gripe”. Mas é isso o que acontece.

De repente, vi a morte na fila, atrás de mim, meio à espreita.

A vida de um brasileiro dura em média 76 anos – que tem dentro de si 666216 horas, que tem em si 39972960 minutos, que tem em si 2398377600 segundos. Eu não sei nem ler esses números, mas no fim das contas eles parecem tão pequenos que 20 minutos na fila fazem uma diferença enorme, porque de repente, eu consigo ver o relógio que a dona morte traz no pulso, pertinho da mão em que carrega a foice.

A questão é que até a mais extraordinária das vidas é comum na maior parte do tempo, sendo diferenciada apenas por momentos de êxtase e extrema felicidade. Em um Universo de bilhões de anos, com sorte eu vou ter 76 aqui na Terra (e para os que creem, uma eternidade com Deus) e eles vão ser comuns. A maior parte desse tempo vai ser lutando contra alguma coisa – seja contra o tédio e a irritação da fila, seja contra as poças d´água no caminho de casa, seja contra uma doença ou um luto. Nós lutamos para viver e vivemos lutamos, sendo que na maior parte do tempo achamos não estar em busca de nada específico. E aí os segundo passam.

No fim, somos uma expectativa de “adeus” entre sete bilhões. Um entre tantos que viveram a vida comum de filas, supermercados e momentos felizes, com ou sem grandes pretensões. Minha grande escolha é viver cavando pelo extraordinário, até nessas horas. Sou incapaz de aceitar que “o mundo como ele é” seja esse mundo. Pra mim, isso aqui é uma enganação. Deve ser por isso que cada um tem um Universo girando em torno de si, onde monstros e miragens ganham nomes e dão algum sentido às coisas. No fim das contas, todo mundo acaba procurando um senhor para servir e uma causa para dar a vida. Entendendo isso ou não, nós os elegemos. Nem que sejamos, nós mesmos, o senhor e a causa.

O dia na lotérica me convenceu de que, dentre tantas outras razões, eu acredito em Deus porque não acho que tenhamos sido feitos para morrer. É incrível viver, mas mais incrível ainda é termos sido criados para viver. E porque eu sei bem que o Criador é, nele mesmo, o Senhor e a causa. Por isso, faço meu jogo e jogo minhas apostas no mundo de lá, no além do tempo. Jesus - o que venceu a morte - me contou os números que vencem. Enquanto isso, a mulher me estende o comprovante de pagamento do meu boleto, meus fones voltam aos meus ouvidos e a roda do tempo volta a correr.