TRAVESSIA (II)
PEQUENAS CRÔNICAS DO COTIDIANO
Houve um tempo em que, menino ainda,elegi como espécie de refúgio uma velha macieira ao meio do quintal.Uma tempestade acompanhada de ventos muito fortes lhe havia quase derrubado.
Quase! Pois o vigor das raizes a fizera resistir.
Inclinada em seu tronco sustentava o emaranhado da ramagem abrindo-se em floradas e frutos assinalando por décadas sua existência.
Esquisitiçes à parte,mas à tardinha costumava eu enfiar-me entre seus galhos e da parte mais elevada ia em silêncio, sorvendo a agonia dos dias. Por vezes o ar carregado do cheiro das vassouras de mato ,evocava mel em colméias. Noutras,embalsamava-se ao odor das defumações pela vizinhança.(Tia Lucinda , depois de varrer os terreiros, espalhava algumas pedrinhas de incenso bento e capim cidró e ateava fogo .
[ A tarde ganhava ares de templos bizantinos ]
Dos ecos que chegavam de longe, talvez a voz quase melancólica de dona Lúcia repontando o gado, tenha sido o mais marcante.Depois, os rádios ligados na Hora do Ângelus, algumas cantigas dolentes pelos carreadores ,e resmungantes queixumes nos rodados de carroções à caminho das colonias de lavradores.
Do alto da macieira eu avistava as poucas casas pelas cercanias, e o campo era um tapete verde rasgado ao meio pelo charco das margaridas.O sol ia se pondo e,do outro lado do charco, o casarão dos Iarema - que dizia-se mal assombrado - escurecido em suas paredes, atiçava-me.
Uma estranha solidão o habitava e daquelas janelas desbeiçadas brotavam segredos indecifráveis.
Quando maçãs ofereciam-se generosamente ao meu redor, era verão ! Depois, galhos despidos diziam-me de outonos, de invernos...
[ Encolhido ao meio deles ,eu fazia “a travessia”]
Uma blusinha de lã,surrada,os mesmos ecos,os mesmos cheiros...E a minha solidão de menino ,varada de ventos gelados.
(Sim,porque meninos também sentem solidão e não sabem muito bem como explicar. Abotoam,simplesmente,em seus corações criança.)
Nesta tarde,no silêncio e penumbra de minha sala, um ligeiro travo de saudade me faz retomar a velha macieira no quintal de minha infância.
Vêm-me a lembrança as divagações de minha mãe:
"Fins de domingo me fazem sentir um aperto no peito que só eu conheço"
E os domingos costumavam mesmo carregar em seus bojos, ares de melancolia.A canção dos ventos pelo arvoredo, o cacarejar desajeitado das galinhas a procura dos poleiros, o choramingo dos bezerros presos no curral.
O lampião a querosene clareando a cozinha e o cheiro das sobras do almoço requentando-se sobre a chapa.
As janelas , pequenos retângulos iluminados pela vizinhança, espiando a devassidão das tardes de pouco movimento.
Agora ,além da minha janela e no começo da noite , vislumbro um céu grávido de chuva
e a frouxa luminosidade nos postes, remete-me aos retângulos do tempo.
Uma estranha sensação veste-me o surrado casaquinho do solitário piá do pé de maçãs
e diante do monitor percebo-me nada além de uma carcaça à espera de minha alma voejante.
Assim que ela retorne, farei a minha...
Travessia.
PEQUENAS CRÔNICAS DO COTIDIANO
“Porque existirá sempre uma ponte entre o dia que morre e a noite que vem”, e a mudez de nossas carências rola feito água sob as estruturas.
Houve um tempo em que, menino ainda,elegi como espécie de refúgio uma velha macieira ao meio do quintal.Uma tempestade acompanhada de ventos muito fortes lhe havia quase derrubado.
Quase! Pois o vigor das raizes a fizera resistir.
Inclinada em seu tronco sustentava o emaranhado da ramagem abrindo-se em floradas e frutos assinalando por décadas sua existência.
Esquisitiçes à parte,mas à tardinha costumava eu enfiar-me entre seus galhos e da parte mais elevada ia em silêncio, sorvendo a agonia dos dias. Por vezes o ar carregado do cheiro das vassouras de mato ,evocava mel em colméias. Noutras,embalsamava-se ao odor das defumações pela vizinhança.(Tia Lucinda , depois de varrer os terreiros, espalhava algumas pedrinhas de incenso bento e capim cidró e ateava fogo .
[ A tarde ganhava ares de templos bizantinos ]
Dos ecos que chegavam de longe, talvez a voz quase melancólica de dona Lúcia repontando o gado, tenha sido o mais marcante.Depois, os rádios ligados na Hora do Ângelus, algumas cantigas dolentes pelos carreadores ,e resmungantes queixumes nos rodados de carroções à caminho das colonias de lavradores.
Do alto da macieira eu avistava as poucas casas pelas cercanias, e o campo era um tapete verde rasgado ao meio pelo charco das margaridas.O sol ia se pondo e,do outro lado do charco, o casarão dos Iarema - que dizia-se mal assombrado - escurecido em suas paredes, atiçava-me.
Uma estranha solidão o habitava e daquelas janelas desbeiçadas brotavam segredos indecifráveis.
Quando maçãs ofereciam-se generosamente ao meu redor, era verão ! Depois, galhos despidos diziam-me de outonos, de invernos...
[ Encolhido ao meio deles ,eu fazia “a travessia”]
Uma blusinha de lã,surrada,os mesmos ecos,os mesmos cheiros...E a minha solidão de menino ,varada de ventos gelados.
(Sim,porque meninos também sentem solidão e não sabem muito bem como explicar. Abotoam,simplesmente,em seus corações criança.)
Nesta tarde,no silêncio e penumbra de minha sala, um ligeiro travo de saudade me faz retomar a velha macieira no quintal de minha infância.
Vêm-me a lembrança as divagações de minha mãe:
"Fins de domingo me fazem sentir um aperto no peito que só eu conheço"
E os domingos costumavam mesmo carregar em seus bojos, ares de melancolia.A canção dos ventos pelo arvoredo, o cacarejar desajeitado das galinhas a procura dos poleiros, o choramingo dos bezerros presos no curral.
O lampião a querosene clareando a cozinha e o cheiro das sobras do almoço requentando-se sobre a chapa.
As janelas , pequenos retângulos iluminados pela vizinhança, espiando a devassidão das tardes de pouco movimento.
Agora ,além da minha janela e no começo da noite , vislumbro um céu grávido de chuva
e a frouxa luminosidade nos postes, remete-me aos retângulos do tempo.
Uma estranha sensação veste-me o surrado casaquinho do solitário piá do pé de maçãs
e diante do monitor percebo-me nada além de uma carcaça à espera de minha alma voejante.
Assim que ela retorne, farei a minha...
Travessia.