Sagrada Família

Sagrada Família

 

 

 

 

 

Ela está louca, a minha irmã. Disse que aqueles sujeitos de olhos puxados são da nossa família. Foi durante uma conversa informal, sabe? De noite, sem que nem porque, resolveu contar os mistérios da prole. Que somos como as videiras, que só produzem bom vinho se cultivadas em terra seca, árida. Precisam sofrer para atingir a primazia. No conforto, plasmam uvas miseráveis, indignas de um bom paladar. Talvez isso mude.

 

Você está louca, retruquei, a madrugada já ia a um quinto e ela contava histórias. Falou sobre o incidente na praia de Omaha e que todos aqueles que estiveram lá, tanto de um lado como de outro, eram nossos parentes. Uma gente muito belicosa, explicou ela, na maior parte das vezes, brigam sem que nem porque. Então me disse que temos consangüíneos na África, na Eurásia e na Indonésia. Que uns levantam cedo e outros dormem até tarde.

 

Perguntei-lhe se temos artistas na família, ao que ela me respondeu de modo enigmático, citando uma pessoa de que nunca ouvi falar: László Moholy-Nagy pregava que a arte e a vida podem ser integradas. “O verdadeiro artista é em si mesmo uma pedra de amolar – ele afia seus sentidos – seus olhos, mente e sentimentos e interpreta idéias e conceitos através de seu próprio cerne”. Nunca ouvi falar desse sujeito, respondi, mas ela pareceu não se surpreender, retificando apenas quão numerosos somos.

 

Resolvi ligar a televisão, a madrugada corria como uma canção na ponta dos lábios, ela apontou o dedo para a imagem, exibiam uma reportagem de um sujeito fumando uma espécie de cachimbo no meio do lixo. “Nosso primo”, disse ela, “e aquele outro também, veja, agora estão apanhando de cassetete, aquele que bate também é da família, veja, mais aqueles, e aquela lá...”. Desliguei o aparelho, precisava de ar. Fui até a calçada examinar uma estrela ou duas. Ela veio atrás. Confessei-lhe, sem ânimo, não ver nada de sagrado na nossa família.

 

Ela reagiu com bom humor, exclamando: que bobagem, somos sagrados da cabeça aos pés, da raiz ao improviso, de dentro pra fora e de fora pra dentro, somos sagrados até onde sequer suspeitamos. Então me disse que temos tios no México, na Austrália, em Galápagos e na Micronésia. E em lugares próximos a esses.

 

Você acredita, indagou ela, que alguns tios falam assim? Assim como? - retorqui. E ela abriu a boca falando: “zaprojectovano taki sposób, obwiazujace wymogi zaleceniach, dolycza prowady”. Caramba, onde você aprendeu isso? Com familiares, explicou sorrindo.

 

O dia raiava e ela me contava histórias, um tanto descabidas, confesso, sobre parentes que apareciam na TV, ou que estavam caídos nas avenidas largas, que moravam em sertões, em cortiços, em tendas, em desertos e florestas, em mansões paradisíacas e em casas alegres como a primavera. Tornou a dizer que uns se levantam cedo e outros dormem até tarde e que é muito relativa, ao passo que muito verdadeira, a máxima “quem não nasce para servir não serve para viver”.

 

Dado momento, pedi-lhe para parar, que me sentia como que extenuado face a tantas revelações, que precisava cuidar do outono senão o inverno teria parca serventia, e que por mais que ela insistisse era-me difícil lidar com o sagrado e com o parentesco, que talvez eu precisasse de mais tempo para processar as informações.

 

Ela me deu abraço gostoso, um abraço transmissor de profundo alento. Naquele momento desejei que o tempo parasse, a fim de que me fosse possível compreender alguma coisa do que ela havia dito e quem sabe um dia poder explicar a outrem. Um irmão, talvez.

 

 

 

(Imagem: Kantha indiana do século 19 da Coleção Karun Thakar com cenas de flora, fauna e pessoas)


(http://www.bernardgontier.com)

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 09/01/2022
Reeditado em 05/09/2023
Código do texto: T7425732
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