Camila

O nome dela era Camila. Eu não sabia muito mais do que isso.

Mas gostava do jeito que ela me olhava, mesmo sem saber o motivo pelo qual ela insistia em me olhar.

Algo normal da minha parte não me dar conta do que acontece ao meu redor, ainda mais quando tinha bebido alguma coisa.

Em um certo momento da noite o bar foi silenciando, como se a aura do ambiente tivesse misticamente mudado.

Me levantei da mesa em que estava sentado e fui até o balcão. Olhei para o relógio na parede. Passava das 3h. Estranhamente eu não estava com sono. Perguntei em quanto já estava indo a conta da minha mesa ao dono do bar e deixei a minha parte paga. Fui andando para o lado de fora e tomei um ar.

A diferença de temperatura era facilmente perceptível. Enchi os meus pulmões com o ar fresco e livre de fumaça da rua e quase me senti bem. O quase é o detalhe do momento.

Não acho que alguém tinha como se sentir realmente bem com tudo o que vinha acontecendo. Uma noite como aquela era só uma fuga. E tenho certeza de que muitas pessoas ao meu redor sentiam a mesma coisa.

Na semana anterior tinham matado alguém no bar ao lado. Alguns dos presentes sequer levantaram da mesa para prestar socorro.

Ontem mesmo morreram 265 pessoas. Saiu no jornal nacional.

Ano passado mais de seiscentas mil.

No fim éramos apenas números. Todos esperando a hora da contagem.

Camila passou do meu lado, se encostou num poste e acendeu um cigarro. Ficou me olhando como se tentasse entender o que eu estava pensando.

- Quer um? Ela perguntou, antes de guardar a carteira de cigarros na bolsa.

- Não, obrigado. - Respondi.

- Pensativo?

- Um bocado.

- Está cedo pra ir pra casa, mas não aguento mais ficar aqui.

- Nem tão cedo assim.

- Eu não gosto de chegar em casa antes do dia clarear.

- Queria ter essa disposição – Falei, andando até o meio da rua.

Camila veio até o meu lado e olhou para o céu.

- Uma hora dessas o mundo acaba e a gente percebe que não viveu o suficiente. Nessa medida eu prefiro pecar pelo excesso.

- Já dei as minhas voltas de mãos dadas com o excesso... Por agora eu só quero paz.

- Paz pra que?

- Pra andar por aí. Paz pra ter tempo de ver as pessoas sorrindo... pra sorrir de vez em quando.

- Você é poeta? – Ela perguntou, com um meio sorriso aparecendo entre os lábios.

- Às vezes escrevo. Por que?

- Porque só quem tem alma de poeta fala esse tipo de coisa.

Fiquei calado alguns segundos processando o que ela tinha dito.

- Sobre o que você escreve? – Ela perguntou, quebrando o silêncio.

- Sobre minhas dores... sobre coisas que vejo por aí. Nunca precisei ir muito longe pra ter sobre o que escrever.

- É uma forma meio barrista de se pensar.

- Todo recifense que se preste é bairrista.

Ela sorriu. Talvez fosse o sorriso mais bonito que eu tinha visto nos últimos tempos.

- Eu sou gaúcha, sabe?

- Não deu pra perceber pelo sotaque.

- Já morei em vários lugares, o sotaque se perdeu pelo meio do caminho. Mas enfim. Quase não sei como vim parar aqui.

- Já me disseram que o caminho é mais importante do que o destino final.

- Eu sabia que ia gostar de conversar com você. – Ela falou depois de uma risada.

- Sabia?

- Foi um palpite. Você tem bons olhos.

- Essa é nova para mim.

- Mas é verdade. Seus olhos são bem intencionados.

Eu não sabia o que responder...

Camila ficou me encarando e tirou os meus óculos do meu rosto.

- Adoro seus olhos – Falou, quebrando o silêncio.

Limpou as lentes na sua blusa e me devolveu.

Eu estava completamente sem graça. Tanto pelo que ela tinha dito, quanto pela forma que falou.

- Quer andar um pouco? – Ela perguntou, por fim.

- Até onde?

- Tanto faz.

- Vamos então.

- Ótimo! – Ela falou, com um sorriso no rosto e se agarrando no meu braço.

Seguimos, enfim, na direção do mar, que não estava longe.

Enfim... apesar do tardar da hora, senti que poderia andar até o dia amanhecer, se pudesse ver mais algumas vezes

aquele sorriso.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 09/01/2022
Código do texto: T7425453
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