Sobre a doçura das águas

As pessoas não querem a doçura. Parece que é do inferno e do fel que entendem e, por esse motivo, abrem bem as pernas num vagão de quinta categoria, para que a gentileza passe longe e não sente ao seu lado. Desconfiam de tudo... amar e ser autêntico é desafio. Reproduzir, vociferar e massificar são palavras de ordem. O mundo é hostil para quem se permite sentir, seja lá o que for. Não falo só de amor e essas coisas de candura, mas também do medo, da inveja. Para ser humano é preciso ser higiênico, polido, cavar a superfície.

Dessas poças d’água já caminhei junto. Recordo a infância, o inverno, eu sapateando nos bueiros, muita água. Eram doces as biqueiras. Muito embora, sempre um adulto denunciasse os ratos e gatos dos telhados. Que mal tinha? Afinal, havia prazer no gotejamento, algo que estrondava os ouvidos e, ao mesmo tempo, abria caminhos para desejos inomináveis. Nada comparado ao que temos hoje, no auge da razão bestial. Não tenho do que me queixar! Não deveria...

O fato é que, do lado de cá, quando me permito banhar nessa chuva, descubro tudo quanto não presta. Os movimentos são mais circulares, o toque é ensaiado, as dobras do tempo e da desaceleração metabólica encaixam perfeitamente. Por minutos tenho certeza de que sou, sem sombra de dúvidas, o mesmo que desafiava a lama, bactérias, ratos, conservadorismo. No fim era só prazer, líquidos, o território da infância, o proibido: eu, fazendo o que eu queria.

A coragem gosta de se esconder. Transmutar. Tenho até pensado em fazer teatro. Estou me divertindo. Me canso de ser um só, muito embora viver uma vida tradicional não me é de todo ruim. Talvez, melhor até que certas revoluções. Tomei coragem de falar sobre isso: acho quase tudo uma chatice. Essa gente que encarna as personagens do alto de suas emoções cristãs. Com todo respeito ao cristo.

Voltando à doçura. Acredito que a água do desejo é feito mel. Mas, nada de um mel mirrado, desses com gosto de barata de beira de estrada. É mais para um mel de abelha italiana, colhido no escuro. Onde as crianças tem prazer e passeiam na toca do lobo mal. Como as crianças que brincam nas Ilhas Trobriand. Acima ou abaixo do bem e do mal, mas longe dos pólos à direita e à esquerda. Espero que continue a jorrar, seja lá por onde for.

Pedro Henrique Farias
Enviado por Pedro Henrique Farias em 06/01/2022
Reeditado em 06/01/2022
Código do texto: T7423352
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