NORMAIS E ANORMAIS
O movimento no Banco onde costumo pagar as contas está maior do que de costume. Deve ser porque é fim de mês.
Pacientemente aguardo na fila e aproveito para folhear a revista sobre Informática que acabei de receber do Heládio, meu jornaleiro de bairro, que já conhece meus hábitos de leitura e deixa reservado o que eu quero, sem que lhe precise pedir. Às vezes tenho até vontade de dizer o clássico: “O de sempre!", mas Heládio é mais rápido, estica o braço e me apresenta o kit completo: jornal da manhã, revista de Informática da semana, além do DVD com o filme do mês. Grande Heládio!
Abro a revista e quando a fila anda, eu estou tão distraído, que fico parado. Nesse momento ouço uma voz conhecida, atrás de mim.
- Meu filho, que tal se você desse uns passinhos pra frente?
Viro-me e encontro o sorriso da Dona Cremilda, velha amiga, diarista por muitos anos em minha casa, sempre atenta ao que acontece no mundo, brigadora por seus direitos e dona de um tipo de argumentação que nem sempre empata com o que pensam os intelectuais e a mídia.
- Dona Cremilda! O que a senhora faz aqui nesta fila? Por que não exerce o seu direito e vai para a dos idosos, que está bem menor?
- Ah, meu filho, nessa eu não caio mais. Imagine que, nos primeiros dias após completar sessenta anos, entrei toda animada numa fila de idosos, onde não havia mais que duas pessoas na minha frente. O mais próximo do caixa estava com um bolo de documentos. Acho que tinha ido pagar todas as contas do prédio onde mora. Demorou um tempão e ficou todo atra- palhado para guardar a papelada em uma pastinha.
Depois foi a vez de uma senhora, um pouco mais velha do que eu. Cumprimentou o caixa, procurou os óculos na bolsa e apresentou um cheque, que o caixa devolveu, pois estava sem assinatura. Aí a velhota (Dona Cremilda é, também, bastante irreverente), que era baixinha, resolveu levar o cheque até a mesa do gerente, não sem antes dizer para mim:
- Queridinha, espere, por favor, que eu volto já.
E lá se foi ela, arrastando os pés, rumo à gerência. No caminho, cumprimentou o guarda, perguntou se a mulher dele tinha melhorado do resfriado e ainda abriu a bolsa, outra vez, para procurar o endereço de uma farmácia que preparava remédio muito bom para curar tudo.
- Quando a velhota voltou, percebi que a pessoa que entrara na fila “normal”, ao mesmo tempo que eu, já estava para ser atendida. E olha que a fila dos “normais” era grande!
- Dona Cremilda, por que a senhora chama a fila dos que ainda não têm sessenta anos de fila dos “normais”?
- Veja só, meu filho! Veja só. Houve tempo em que eu era chamada de idosa. Depois, veio essa história de terceira idade. Em alguns cinemas o ingresso diz que sou “sênior”. E os outros? Alguém é chamado de segunda idade? Alguém recebe ingresso de “júnior”? Só posso concluir que os outros são os “normais” e nós, os velhos, somos os “anormais”.
- Vá lá, Dona Cremilda. Continue a sua história. O que aconteceu depois que a velhinha assinou o cheque?
- Ah, antes de voltar ela elogiou a gravata do Gerente e o penteado da Subgerente. Chegando ao caixa, verificou que havia esquecido o cheque na mesa do Gerente e, virando-se para mim, disse:
- Querida, volto já.
- Aquela “sênior” já estava começando a me dar nos nervos, meu filho. No caminho de volta da gerência, o guarda, quando a viu, afastou-se discretamente e a subgerente abaixou-se atrás da mesa, fingindo que procurava alguma coisa no chão. O gerente saiu apressadamente de seu lugar, estendeu o cheque para a velhota e, passando por ela, a toda, disse-lhe, entre sorris os:
- Estou atrasado para uma reunião com a diretoria, Dona Epiphanya. Tenha um bom dia.
-De volta ao caixa e após receber o dinheiro, Dona Epiphanya perguntou:
- Querido, posso pegar a minha aposentadoria também com você?
- Claro, Dona Epiphanya - respondeu o caixa com ar resignado.
A velhinha voltou a abrir a bolsa, remexeu-a, esvaziou-a na boca do guichê e concluiu desolada:
- Ah, querido. Acho que esqueci em casa. Amanhã eu volto.
A danada da véia já estava para sair quando avistou o guarda, e ainda teve fôlego para lhe dizer:
- Querido, querido. Tome cuidado com a saúde da sua mulher. Um simples resfriado pode virar coisa séria. Compre o remedinho que eu receitei.
- E aí ela foi embora, não foi, Dona Cremilda ?
- Quase, meu filho, pois quando eu ia entregar o meu magro chequinho, a Dona Epiphanya ainda bateu no meu ombro e disse:
- ‘brigadinha, querida. Você foi um amor. Ficou cansada? Olhe, tenho uma receita para dor nas pernas que é ótima. Você quer?
- A essa altura, meu filho, o máximo que consegui foi sorrir e balançar com a mão num gesto de quem nada quer - arrematou Dona Cremilda.
- E a fila dos “normais”?
- Andou rápida, meu filho. A dos “anormais” é que ficou imensa. É por isso que eu nunca mais vou entrar na fila dos idosos, velhinhos, sêniors ou do que mais queiram me chamar. Mexe com os nervos da gente.
- É, Dona Cremilda. A senhora tem razão.
- Agora vê se olha pra frente, meu filho, que a fila já andou e você continua parado no mesmo lugar. Tá parecendo a Dona Epiphanya!