TARDE, AMIGO!
Meu pai não foi muito longe nos estudos. Órfão, de pai e mãe, desde pequeno, ficou sob a tutela de um tio, mas quem realmente cuidava dele era sua irmã, minha tia Ondina, que não tinha recursos para encaminhá-lo a cursos que lhe proporcionassem um grau de educação mais elevado. Concluiu, se não me falha a memória, o que hoje chamamos de ensino médio, numa escola, cujo diretor era o coronel Aristarcho Bittencourt, oficial da reserva do Exército.
Um dia pai me contou a seguinte história.
Ele terminava o antigo curso ginasial e estava matriculado na escola dirigida pelo coronel que, devido à sua rígida formação militar, exigia de seus alunos o cumprimento rigoroso das regras de cortesia vigentes na época e deles cobrava comportamentos éticos adequados aos “futuros cidadãos responsáveis pelos destinos da nação” (com cacófato e tudo) - conforme costumava dizer em seus discursos de fins de ano letivo.
A escola até que procurava oferecer uma certa aprendizagem prática. As aulas de Francês, por exem- plo, eram voltadas para o ensino de palavras usadas no dia-a-dia. Como era um internato, na hora das refeições, com a presença dos professores de Francês e do próprio diretor, os alunos somente poderiam falar com os colegas nesta língua, fosse para pedir algum alimento que estivesse longe de seu alcance, fosse para trocar ideias com quem estivesse à frente ou ao lado. Se falassem Português, seus nomes seriam anotados e eles sofreriam diminuição nos graus tirados nas provas mensais seguintes daquela matéria.
Quando suas aulas começavam, o coronel, que era professor de Matemática – como quase todo militar daquela época - fazia a chamada e iniciava a apresentação do assunto do dia. Se um aluno chegasse depois de começada a exposição - sim, todas as aulas eram, invariavelmente, expositivas - o diretor parava, puxava do bolso da algibeira um relógio com extenso cordão de ouro e, fitando o atrasado bem nos olhos, dizia, com um sorriso nos lábios:
- Tarde, amigo!
O infrator baixava os olhos, pedia desculpas, e ia sentar-se em sua carteira, passando a prestar toda a atenção às palavras do professor, com medo que ele o arguísse, a qualquer momento, o que jamais acontecia. O “Tarde, amigo” já era suficiente e o coronel, seguindo os princípios que passava aos alunos, não abusava da autoridade. O olhar assustado do jovem já era, para ele, auto-punição suficiente.
Durante suas aulas, quando fazia pequenos intervalos para que os alunos pudessem descansar as mãos, depois de imensa cópia do que ele escrevia ou desenhava na lousa, o professor deixava que eles se aproximassem e lhes contava histórias de sua vida, onde sempre predominavam exemplos de dignidade, desprendimento e coragem. Antes de reiniciar a aula, ainda tinha tempo para lhes repetir o discurso, que todos já sabiam de cor:
- Levo uma vida regrada, pratico ginástica diarimente, não fumo e nem bebo. Mastigo os alimentos vagarosamente e tomo muito líquido, ao longo do dia. Não tenham dúvidas: vou chegar aos cem anos!
Um dia, devido a um incidente no trânsito, resultante da chuva que caía fortemente, o coronel entrou em sala com meia hora de atraso. Os alunos levantaram-se para cumprimentá-lo, como de costume, e ele, quando se dirigia a sua mesa, parou para examinar o que na lousa estava escrito e desenhado: um ser encapuzado, com um manto branco, sem face, segurando uma enorme foice, “olhava” para um relógio
e, a seu lado, se destacavam os versos que se seguem:
Quando ele à cova descer,
Cem anos levará consigo.
E a morte, sorridente, há de dizer:
Tarde, amigo!
Não me lembro que meu pai tenha dito qual foi a reação do coronel, mas, para mim, sendo ele um homem inteligente e sensível, deve ter ficado vermelho como um pimentão e dado um abraço em cada um de seus alunos, simbolizando, com isso sua aprovação ao espírito brilhante do(s) autor(es).
Dez é que certamente ele não distribuiu para a turma toda.