SÓ PRA COROAS...

Manhã de sábado.

O inverno começou há poucos dias, mas o ar é todo de outono: temperatura amena, céu azul, sol forte.

De repente, bate-me uma nostalgia e eu me vejo, aí pelos quinze anos, em pleno inverno do Rio de Janeiro, tremendo de frio, todo encasacado e diante de um copo fumegante de Toddy.

Minhas preocupações naquela época eram exclusivamente com os estudos ou com alguma paixão de adolescente tímido, sempre mais platônica do que impetuosa, mas como era bom sonhar com um amor nem sempre correspondido...Daí era um pulo para a poesia derramada, os suspiros de olhos abertos ou fechados, os sorrisos abobalhados, percebidos muitas das vezes pelos pais - cúmplices calados desses mo- mentos tão doces na vida do adolescente. Eles fingiam com naturalidade que não estavam nem ali, mas cer- tamente torciam por mim.

Tinha, também, a “pelada” na rua, interrompida, de vez em quando, pela presença dos poucos carros que circulavam ou pelas pessoas que passavam. Quem estivesse com a bola no pé, parava, imediatamente, ao grito de: “Para a bola!” Tão logo o veículo ou as pessoas se afastavam, o jogo era reiniciado sem necessidade de nova ordem de comando. Quantos dedos esfolados, quantas pequenas fraturas, sem que nos déssemos conta disso. Doía por um tempo e depois tudo voltava ao lugar, por si mesmo.

“Colado! Colado!”

Eram os gritos que mais se ouvia à noite, quando a meninada se reunia na rua para o empolgante jogo de Bandeira. Para os que nunca brincaram de Bandeira, nem adianta tentar explicar as regras. Ban-

deira tem é de ser jogado! Os vencedores faziam a festa, para desespero dos vencidos:

“Ganhamos! Ganhamos!”

“Simples que a carniça é nova!”.

Outro bordão que dava início à nem sempre pacata brincadeira de pular carniça. Quando “o” carniça era forte e se julgava humilhado, azedava tudo. As bri- gas e discussões eram constantes, mas logo todos acabavam por se entender e as regras eram então repetidas para que não voltassem a ocorrer excessos.

Ninguém ficava inimigo de ninguém.

No auge das brincadeiras, dobrava a esquina o sorveteiro, com sua carroça envidraçada.

“Mineiro! Mineiro! Olha o sorveteiro”.

Lá vinha aquele homem gordo, com o seu avental branco, apregoando a mercadoria.

- Chocolate, limão, caju, manga. Tem doce também: cocada preta e branca, suspiro, sonho, peiti- nho de moça. Tudo limpo e fresquinho.

Todos corriam e largavam a brincadeira para saborear as delícias do Mineiro. Ele até fiava, mas os que se esqueciam de pagar recebiam um olhar piedoso do sorveteiro, sempre acompanhado da frase:

– Pegue lá o dinheirinho, antes de tomar mais um sorvetinho.

O vendedor de algodão doce também fazia su- cesso com a garotada. Quando se ouvia a sineta sendo tocada na rua, já sabíamos que o “homem do algodão” estava por perto. Muitas vezes ele vendia pouco, pois a grande atração era ver o algodão sendo feito na máquina, a partir do açúcar cristal: iam aparecendo pequenos flocos brancos na bacia da carroça. Eles se agregavam, aos poucos, formando uma espessa nuvem que era retirada, habilmente, pelo vendedor enrolada sobre si mesma, formando um conjunto harmonioso. Para concluir, um pedaço de papel (nada parecido com um guardanapo atual, mas perfeitamente limpo) segurava o conjunto que era, então, oferecido ao comprador.

- Marraio, firidô sô rei!

- Companha!

Ia começar o jogo de bola-de-gude mais famoso da época: o jogo de búrica (também chamado de búlica). Eram escavados três pequenos buracos no chão de terra, com espaço entre eles de cerca de um metro (para os principiantes) e de dois para os veteranos. O jogo começava com todos atrás da terceira búrica, tendo de atirar suas bolas para ver quem mais se aproximava da primeira. “Marraio” significava ser o último a lançar a bola. “Companha” era aquele que jogaria a bola, logo após o “Marraio”. Quem acertasse, ferisse (firidô, corruptela de ferir), ou seja, quem acertasse numa das bolas atiradas antes, tinha direito a começar o jogo. Se ninguém ferisse, jogava primeiro o que ficasse mais próximo da borda da búrica. O ven- cedor levava as bolas dos participantes, como prêmio.

Pena que esses tempos não mais se repetem. A chegada dos computadores, DVDs, videogames, celulares, tablets e toda a parafernália eletrônica, aliada aos meios de comunicação de massas encolheu o espaço e o tempo que antes eram destinados ao romantismo e às brincadeiras de rua.

Dançar de rosto colado, hoje, talvez seja privIlégio de poucos. O rock´n’roll encarregou-se de afastar, fisicamente, os casais; de individualizá-los; de torná-los artistas de um show todo particular, onde a altura do som é tal que ninguém consegue entender o que o outro diz, a meio metro de distância. Dançar, hoje, é ficar se mexendo o tempo todo, num espaço diminuto.

Lembro-me dos autores que nos recomendavam

na escola. Dispúnhamos de tempo e éramos estimulados a ler, cada vez mais. Hoje, qual é o “argumento” usado pelos alunos, quando indagados por que não leram o texto recomendado com duas semanas de antecedência?

- Não tive tempo, professor!.

O tempo teve de ser distribuído por uma série de atividades e nada sobrou para a enfadonha tarefa de ler: o cursinho de Inglês; as aulas de natação ou de balé; o festival de cinema que durou duas semanas; os intermináveis papos no Orkut; umas partidas no vídeo- game; telefonemas altamente impulsivos para a pessoa amada; o baile funk dos sábados. Realmente não sobra tempo para ler esses textos chatos que o professor insiste em apresentar à turma. Quem sabe, dizendo sinceramente que “não tive tempo” o professor acabe por encontrar alguma fórmula mágica que faça o bom grau aparecer no final do período?

Não costumo usar a expressão “no meu tempo”.

O meu tempo é hoje e tento me esforçar para conviver ao lado de todas as transformações ocorridas ao longo dos anos, mas aceitar, assimilar essa avalanche de mudanças sócio-culturais é demais para este pobre romântico-sonhador.

O melhor a fazer, nesse momento em que a garganta começa a apertar e uma teimosa lágrima insiste em se fazer presente, é ir saindo de fininho, totalmente entregue à nostalgia.

Quem sabe um LP do Nat King Cole, cantando When I Fall in Love, mesmo com um pouco de chiado, não me dará ânimo para enfrentar a dura realidade do aqui-e-agora?

Ruy Soares
Enviado por Ruy Soares em 03/01/2022
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