Cartas de Salamanca - Neve na Europa e chuva no Nordeste
Neve na Europa e chuva no Nordeste
“Meu coração tropical está coberto de neve”
(Música Corsário, João Bosco & Aldir Blanc)
DAVID DE MEDEIROS LEITE
Em minha chegada por essas terras, há cerca de um ano, não vi propriamente neve caindo. É bem verdade que encontrei o chão branco, em conseqüência da forte nevasca da noite anterior, que seria a derradeira daquele inverno. Este ano foi diferente. Estive acompanhando os momentos que antecederam a temporada invernosa. E à medida em que a intensidade do frio aumentava, surgiam ansiosos comentários: “Ainda esta semana, teremos neve”, dizia um. “Logo, logo cairá neve”, opinava outro.
Se a eles, tão acostumados, causava expectativa, imagine a quem só conhecia a cena por cinema. Bem, em meio a uma tarde de aulas, quando saímos para um intervalo, pelo grande painel de vidro, que dá para um pátio interno, nos deparamos com aqueles pequenos flocos caindo feito partículas de algodão. Realmente, é de encher nossos olhos humanos. Deu vontade de ficar ali, parado, olhando... Indescritível!
Alguns dias depois, lendo na biblioteca, vi pela janela que, novamente, nevava. Parei a leitura e lembrei-me de escrever algo. “A neve desvia a leitura”, foi meu primeiro impulso. E o título que me ocorreu era mesmo uma referência a umas das belas crônicas do saudoso Dorian Jorge Freire: “A morte desvia a leitura”. Recuei, pelo menos no título, para não suscitar descabida comparação.
Resolvi enveredar por algo em torno de uma emulação entre o tão desejado período chuvoso para o nordestino e o espetáculo da neve para o europeu. Quando o trovão ecoa e os raios alumiam o céu escuro e carregado do Nordeste brasileiro, o sertanejo fica todo animado. Se o açude sangrando é bonito de se ver, o chão molhado para o cultivo é vida para o agricultor. A plantação na vindoura vazante também faz parte do cálculo alegre, estampado no rosto enrugado pelo sol inclemente.
Em outro diapasão, neste lado do Atlântico o inverno também significa alegria. Para aqueles que nasceram por aqui, arrisco dizer, a sensação é de bem-estar. Enquanto nós, que estamos por aqui, e não somos acostumados com o acoite do frio, ficamos a maior parte do tempo agasalhados dentro dos apartamentos, próximos aos aparelhos de calefação, limitando nossas saídas ao estritamente necessário, eles passeiam bem vestidos, a qualquer hora, e desfrutam de saborosos cafés, calientes chocolates e encorpados tintos... As chamadas “estações de esqui” lotam. Os comentários giram em torno de quem já foi e/ou de quem irá, em um próximo final de semana, esquiar em tal ou qual estação.
Num final tarde, de um gelado dia, voltando da universidade, doido para chegar em casa, vejo, numa elegante cafeteria, alguns casais saboreando vinho e contemplando, pelas vidraças, a neve cair. Ri sozinho ao recordar que, quando menino, tomando banho de chuva e correndo pelas ruas alagadas do bairro Doze Anos, passava em frente à bodega de seu Lopinho, ou a de seu Expedito — por vezes, até entrava para comprar uma bagana —, e geralmente encontrava aquelas turmas tomando uma bicada de cana, para esquentar, enquanto entremeava a conversa com gargalhadas descontraídas, cuja sonoridade se confundia com o rumorejar das águas que rolavam pelas beiras das calçadas da Frei Miguelinho, ou da Felipe Camarão, e que desciam apressadas em busca do estuário do, ainda não poluído, rio Mossoró.