Cartas de Salamanca - A esquina do sax

A esquina do sax

DAVID DE MEDEIROS LEITE

Não adiantava apurar o ouvido. Jamais iria distinguir uma nota de outra. Um ré maior de um dó menor. Um mi de um fá. Se, pelo menos, tivesse insistido um pouco mais naquelas aulas que freqüentei no conservatório Dalva Estela, hoje poderia conhecê-las melhor e até, quem sabe, identificar um sustenido ou um bemol. Mas, não adiantava chorar as notas derramadas.

Em verdade, não existia uma curiosidade exacerbada. Era apenas uma espécie de “exercício” para encurtar o caminho. Quem seria tão disciplinado? Um velho músico? Ou seria um entusiasmado neófito? A pontualidade impressionava. Cumpria (ou cumpre) uma rigorosa rotina — caxias, diriam antes. Nesses meses, não lembro de um só dia em que não tenha sido “saudado” pelo já familiar som do sax.

No começo, pouco observava. Depois, aquela esquina virou referência em minha caminhada diária. Quando alcançava o quarteirão que lhe dava acesso, já aguardava o início da sonoridade, que chegava de forma distante, suave e, à medida em que me aproximava, o som ia aumentando... Como se os meus passos fossem uma dessas seqüências que manuseamos nos controles remotos da vida. Cada passada representando um daqueles negros degraus que simbolizavam os decibéis do volume.

Quando chegava especificamente na esquina, arriscava uma paradinha, rápida e discreta. Coisa de segundos. Somente o tempo de olhar para um lado e outro, repetindo aquele gesto característico de quem se prepara para atravessar uma rua. E o fazia, assim, primeiro porque minha rotina, tal qual a do músico, não podia sofrer solução de continuidade, e, em segundo, por ter chegado à conclusão de que, mesmo saindo de casa minutos antes, com o objetivo de uma parada mais longa — como tentei —, ficava meio sem sentido permanecer ali, parado, numa movimentada esquina. Não. Melhor seria trilhar a forma natural e ouvir só o que o momento proporcionasse.

Um dia, confesso, invejei dois senhores que travavam descontraída conversa, justamente ali, na esquina do sax. Ninguém atrapalhava ninguém. Os senhores, do lado de fora, conversavam. Lá dentro, o virtuose seguia, impávido, com seu ensaio. O cerrado portão daquela garagem e as altas paredes laterais aparentavam proporcionar uma acústica ideal. Suposição minha, claro.

Por conta da suposição, lembrei-me até de uma história contada por Rui Castro, no livro Chega de Saudade onde, falando das esquisitices de João Gilberto, relata um período em que ele, João, permaneceu na casa de uma irmã, em Minas Gerais, e lá descobrira no banheiro da casa o lugar de melhor acústica para os seus longos ensaios ao violão.

Bem, voltando ao “amigo” saxofonista, certo dia, numa de minhas passagens, identifiquei que ele estava a tocar a canção “Perfídia”. Até então, nada tinha sido familiar, como falei. Foi, sem dúvidas, uma agradável surpresa. “Perfídia”, que tem inúmeras versões por todo o mundo, é de autoria de um compositor mexicano chamado Alberto Dominguez, tendo sido gravada no Brasil por muita gente: Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Alceu Valença e pelo afinadíssimo Trio Irakitan.

Apesar de haver identificado uma ‘peça’ no repertório do artista, jamais me seria possível delinear o perfil do músico da esquina. E, diga-se de passagem, não era esse o meu objetivo. Na banda Artur Paraguai, de nossa Mossoró, por exemplo, lembro de graves senhores tocando instrumentos de sopro. Aqui, em Salamanca, já tive oportunidade de assistir, na Plaza Mayor, a uma espécie de retreta, protagonizada pela banda local, e pude observar a predominância de uma faixa etária bastante jovem. Portanto, é de óbvia conclusão que gosto e inclinação musical independem de idade, sexo ou raça.

Como de um semestre para outro meus horários de aulas foram alterados, não tenho mais o “encontro” diário com o trautear das notas daquele sax... Mas, em nossos caminhos, existem outras esquinas com musicalidade, somente temos que descobri-las.

David de Medeiros Leite
Enviado por David de Medeiros Leite em 18/11/2007
Código do texto: T742071