O SONHO NÃO ACABOU
TENTANDO CRIAR A PARTIR DO PESADELO
Nelson Marzullo Tangerini
Estamos dentro de um pesadelo que parece não ter fim: mistura de Covid 19 e fascismo (covid 17). Embora, paire no ar essa atmosfera de fim de ano, 2021, misturada com o fim do mundo - o apocalipse -, tentamos, a todo custo, sair dele, alimentando o sonho – e o desejo - de que um novo mundo seja possível, baseado, portanto, em princípios libertários.
Estátuas frias, de mitos falidos, começam a ser derrubadas, queimadas ou pichadas, diante das câmeras de televisão em todo o mundo. Ou em fotografias, nas páginas dos jornais.
Ao mesmo tempo, ouvimos, nas ruas, nas praças e nos mercados, discursos ultrapassados, fascistas, pedindo intervenção militar, a volta do AI5 e da ditadura militar. Enfim, discursos incabíveis para os dias atuais. De minha parte, pergunto: Estamos mesmo no século 21?
Estamos em 2022 e esses velhacos, seres visivelmente frustrados, necessitados de um transplante de cérebro, ainda vomitam seus sonhos autoritários. Saíram de velhos armários e, já fora deles, encontram legitimidade e impunidade. São militares, evangélicos pentecostais, professores, escritores, cantores, médicos, jornalistas – comprometidos com a classe dominante.
Vemos, diariamente, pessoas nefastas beijando estátuas frias e idolatrando ídolos de barro, chamados de mitos por uma fatia iletrada da população, impulsionada por uma enxurrada de fakenews disparadas pelo gabinete do ódio e pelos negacionistas, em favor do estado autoritário.
No final da década de 1980, a ditadura militar agonizava, mas ainda fazia das suas. Deixou para trás uma triste história: de trevas e um sem número de homens, mulheres, crianças e índios torturados e mortos – muitos deles ainda desaparecidos.
Um dia desses (em 2021 – em plena era Bolsonaro), fui ao Riocentro com familiares e me recordei da bomba que estourou no colo de um capitão do exército. Aliás, toda vez que vou ao Riocentro, me vem a sensação de que eu podia estar morto, se aquela bomba estourasse no meio de um show de 1º de Maio, dia do Trabalhador.
O outro soldado, o sobrevivente, não sabia, morava no mesmo prédio em que meu irmão do meio mora, na Tijuca. Posteriormente, fiquei sabendo que o terrorista ali morava, porque o prédio estava sendo protegido e monitorado por soldados do exército, que dispensou, temporariamente, o humilde porteiro.
A mentira que havia sido plantada naquele árido momento era de que comunistas queriam explodir o Riocentro para tentar macular as forças armadas, já desgastadas, por conta de tantos crimes que envergonham a raça humana. E o pior: houve gente que acreditava nessa versão.
Do Riocentro, ainda assim, tenho boas lembranças, pois vi nosso poetinha, Vinicius de Morais, passar perto de mim, com seus trajes simples, calça branca, camisa vermelha, guias ao redor do pescoço e sapato de lona, além de assistir a shows memoráveis de grandes artistas da MPB.
Agora há pouco, no primeiro dia do ano, lendo o livro “Léxico familiar”, de Natalia Ginsburg, leio uma frase profética, da escritora italiana: "O fascismo não estava com cara de acabar logo. Aliás, não está com cara de acabar nunca".
Enfim, tentamos, a todo instante, nos rebelar contra a lavagem cerebral imposta pela extrema-direita, durante trinta anos de ditadura militar e, também, durante todos esses últimos três anos de desgoverno Bolsonaro.
De fato, parte da humanidade, com a convicção terrivelmente – e erroneamente - cristã, ainda não evoluiu o suficiente, atrasando, assim, a evolução intelectual do país: desqualifica a ciência, acredita em mitos, em regimes autoritários, sanguinários, enquanto idolatra torturadores.
Consideremos, portanto, que, em outras palavras, o sonho não acabou: porque ainda devemos sonhar com um mundo mais humano, libertário, sem medo de que os fantasmas do fascismo possam sair de seus armários - túmulos frios - para amedrontar aqueles que têm o amor, a fraternidade e a paz como propostas para um novo mundo. Há vida inteligente fora do bolsonarismo. E devemos cultivar esses ideais.