PASSARINHOS NO CRISTO

Toca o telefone. Encaro-o, e decido:

- Não vou atender. Pela hora deve ser algum chato ou alguém querendo me empurrar um plano de saúde ou seguro de vida. Afinal, a secretária eletrônica está aí para pegar os recados. Mas, e se for alguém a quem não ouço e nem vejo há muito tempo?

Pego o aparelho e nada digo. Aí ouço aquela voz inconfundível, com seu jeito todo peculiar:

- Ué? Ficou mudo, meu filho? Eu tenho certeza que você está aí. Quantas vezes eu vi você fazer isso quando trabalhava como empregada na sua casa. Continua o mesmo gozador. Deixe de besteira e atenda logo, vai.

Apanhado na brincadeirinha, tento aparentar segurança e atendo com uma gargalhada.

- Dona Cremilda! Como sempre, acertou na mosca. A senhora sempre soube que eu detesto falar ao telefone, mas, a que devo a honra de sua ligação?

- Já tô arrependida de ter telefonado. Você continua o mesmo conversa-fiada de sempre.

- Não seja injusta, querida. Sabe muito bem o quanto eu gosto da senhora, apesar da minha conversa-fiada.

- Tá bom, tá bom. Desta vez, passa. Olhe, eu telefonei porque estou roída de saudades, e queria muito ver você.

- Agora ficou sério, minha amiga. Onde a senhora está? Vou buscá-la, imediatamente, para fulminarmos, juntos, essa saudade “marvada”.

- Não precisa ir a lugar nenhum. É só abrir a porta do seu apartamento. Vai dar de cara comigo. Estou de celular novo.

- A senhora e suas surpresas. Já estou indo.

Abri a porta e fui recebido por aquele sorriso maroto, típico da minha amiga, tão cheia de ideias próprias e, algumas vezes, extravagantes. Ela sempre compensou o pouco estudo que teve com uma inteligência aguda e uma percepção acima da média, em comparação a pessoas com muito mais “bagagem cultural.”

- E aí, meu filho. Vai ficar parado olhando a velha, feito um dois-de-paus? Não me convida a entrar?

- Claro, amiga. Acomode-se naquela poltrona macia que a senhora me ajudou a escolher, na última vez em que saímos juntos.

Tomei-a pelo braço magro, mas vigoroso, e a conduzi até a poltrona, onde ela se acomodou e ficou me olhando, com extrema ternura.

- Não lhe ofereço um café ou suco, porque nós vamos almoçar fora, agora mesmo, naquele restau- rante que a senhora gosta e de onde podemos ver a imagem do Cristo Redentor. Espere só um instantinho, enquanto troco de roupa.

Demorei-me, de propósito, escolhendo as roupas. Sabia que Dona Cremilda, ficando só, iria, de imediato, folhear o álbum de retratos que eu tenho como objeto de decoração, sobre a mesinha de centro. Nele se encontra uma parte da minha história, de criança até quase os dias de hoje. Pode-se, inclusive, ver fotos da chegada dela, ainda mocinha, à nossa casa. Meus pais rindo junto à “velha”, como Dona Cremilda gosta de ser chamada, enquanto eu, por detrás deles, fazia caretas para a câmara.

Numa foto grande e colorida, todo mundo fantasiado e soprando línguas-de-sogra, numa das festinhas de aniversário, sei lá de quem. Dei-lhe bastante tempo e apareci na sala.

- Poxa, pensei que não vinha mais, disse-me ela, com voz rouca, sem conseguir esconder uma lágrima que pingou sobre a mão que folheava o álbum.

- Vamos lá, minha amiga, que a fome está batendo firme e o estômago começa a roncar - brinquei para trazê-la de volta do passado.

Fomos a pé, que o restaurante ficava a poucos metros do meu apartamento. Durante a caminhada ela nada disse e eu respeitei o seu silêncio de saudade.

– Vai beber alguma coisa antes de mandar vir aqueles pasteizinhos que a senhora adora?

- Você sabe que a velha não bebe nada que tenha álcool. Mande vir um refresco de tamarindo, que eu sei que este é o único restaurante que tem essa água barrenta, aqui por onde você mora, porque lá pelas minhas bandas, é o que mais tem.

Encomendei meu chopinho e a água barrenta da Dona Cremilda e lancei as clássicas perguntas que sempre davam início às nossas variadas conversas.

- E então, minha velha? Como vai a vida? Tem novidades ou quer que eu dê a saída?

Ela me olhou, balançou a cabeça lentamente e emendou:

- Até parece que eu dou a saída nos nossos bate-papos. Mande logo a sua provocação, que eu tô pronta pra rebater.

- Tá bom, já que prefere assim...O que a senhora acha dos desabamentos dos três edifícios no Centro da cidade?

- Sei lá, meu filho. Tinha umas obras num deles, mas eu acho que isso foi só a gota d’água. Os edifícios da parte velha da cidade, tá tudo muito acabado, sem conservação. É uma janelinha aberta aqui, a retirada de umas paredinhas ali, e quando vai ver, os tijolos velhos e roídos, além das pilastras também comidas pelo tempo não se aguentam e...cimeeeento!

- Cimeeeento? Que história é essa?

- Ué? Quando botam uma árvore grandona no chão, o que é que se diz? Madeeeeeira, não? Então? Quando vem um montão de paredes abaixo, gritamos o quê? Cimeeeento!

- Não digo que a Dona Cremilda é surpreendente? Ainda estou rindo da lógica da minha amiga,

quando ela aperta o meu braço e, apontando na direção do Cristo Redentor, pergunta:

- O que são aqueles passarinhos voando em volta da estátua, meu filho?

- Passarinhos? Que passarinhos?

- Deixa a velha pôr os óculos. Ah, não são passarinhos. Parecem helicópteros. O que eles fazem tão perto da estátua?

- Ah, minha cara. É a última palavra em turismo por aqui. Os gringos (e até os da terra) alugam os helicópteros para tirar fotos da cabeça, dos braços, do...

- Pode parar por aí. Mais respeito com o Cristo. Não quero saber que outras partes mais a gringalhada fotografa do Criador.

- Ô, Dona Cremilda. Acha que eu ia desrespeitar aquele a quem a senhora chama de enviado do Criador? Eu ia falar do manto. A maldade, desta vez, veio da sua cabeça.

- É, tem razão. É que eu sei que você não acredita que o Cristo veio para nos salvar e fiquei imaginando que ia dizer uma das suas bobagens. Peço desculpas. A gente falava dos helicópteros. Deixa eu pensar mais um pouco.

Quando a “velha” pede um tempo, é melhor não contrariá-la. Pode o mundo desabar que ela não se altera.

Fixa os olhos num ponto distante e permanece muda por muito tempo. Fico imaginando o que se passa naquela cabecinha grisalha.

Olho, mais uma vez para a imagem e conto três “passarinhos” por perto dela.

De repente, D. Cremilda dá um salto na cadeira e, virando-se para mim, explode:

- Meu Deus!. Que absurdo, meu filho! Aqueles aviõezinhos zumbindo perto do Criador. Você já viu coisa parecida em outros lugares? O filho de um amigo meu que esteve na França me disse que nunca viu nada voando por perto da tal de Torre Eiffel. Um outro, que veio de Londres, jura que não passam helicópteros sobrevoando o Big Ben pra gringalhada nenhuma ver. Aliás, tudo por lá é só mesmo para inglês ver. E o tal do Louvre, meu filho? Tem passarinho sem asas rodando em volta? De mau gosto, segundo outro amigo que vive viajando para a França, já basta uma tal de pirâmide de cristal que plantaram em frente ao museu.

- A senhora está bem informada, Dona Cremilda. Cheia de amizades importantes.

- Até parece, meu filho. É tudo filho e neto de vizinhos meus que estudaram e se formaram, porque os pais lutaram para que eles não tivessem a mesma vida difícil deles. Você me entende, não é? Além do mais, sou amiga do jornaleiro da minha rua e vivo fuçando revistas estrangeiras que ficam encalhadas e que ele acaba me emprestando. Cê sabe que eu não tive estudos, mas gosto de ler, né?

- Tá bem, tá bem. Conclua seu pensamento.

- Vamos ver se consigo. Você sempre me interrompe e acaba atrapalhando o meu raciocínio. Imagine a cena, meu filho: helicóptero pra cá, helicóptero pra lá. Aí um deles enguiça e cai, batendo com toda força na cabeça do Cristo, explodindo ela. Que Deus me perdoe a ideia, mas que pode acontecer, lá isso pode. Tente imaginar a cena. E depois? Ah, já sei: abertura de “rigoroso” inquérito para apurar responsabilidades; pedido de afastamento do Prefeito, por exigência da Oposição; abertura de licitação para a restauração da cabeça; revolta dos donos de vans que fazem o transporte de passageiros das Paineiras até o alto do Corcovado e que vão ficar sem a freguesia; pedido de Bolsa- Cabeça para os vendedores de penduricalhos que perderão sua fonte de renda; passeata de donos, garçons e demais empregados dos restaurantes, querendo altas indenizações por lucros cessantes .Essa eu li ontem mesmo, numa revista de economia. E por aí vai.

- É, D. Cremilda. Eu não tinha pensado nisso. Tem alguma sugestão?

- Não, meu filho. Sei de um monte de gente que tentou falar com as autoridades competentes, mas os telefones estão sempre ocupados e os que escrevem, nunca têm resposta. Só me resta rezar para que a tragédia não ocorra tão cedo. Mais uma década, no máximo, e os vermes vão comer estas carnes magras e eu não serei testemunha dessa desgraça que, certa- mente, ainda vai acontecer.

- Cruzes, amiga. Você vai durar muito mais. Vá rezando, que daqui a pouco passa essa onda de “passarinhos” em volta do Criador e até estou convidando a senhora para irmos, qualquer dia desses, até o pé da estátua. Enquanto a senhora faz as suas orações, eu fico apreciando o belo panorama que de lá se vê.

- Tá bom, meu filho, mas antes, vamos esperar que os helicópteros parem de voar perto do meu Cristo Redentor. Já imaginou se cai um deles em cima da gente? Aliás, antes de morrer, ainda tenho esperanças que você deixe de ser herege e me acompanhe nas missas dos domingos. Pode ser na igrejinha do seu bairro mesmo.

- Vou pensar no seu caso com muita simpatia, querida.

- Agora, meu filho, vê se pede logo a nossa comida e esquece os pasteizinhos, que já está ficando tarde e eu preciso pegar o meu caminho.

- Ei, garçom! O menu e mais um de tamarindo, no capricho, aqui pra minha amiga.

- Mais um chopinho, doutor?

- Não, não, parei de beber faz tempo.

- Você e suas gracinhas. Viu a cara do garçom recolhendo o seu copo de chope, ainda pelo meio?

Ruy Soares
Enviado por Ruy Soares em 02/01/2022
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