CORAÇÃO DE DEDINHOS
A vitrine da loja de roupas femininas íntimas exibe seus produtos, em meio a diversos corações, que se espalham sobre as peças.
Plantada em frente à coleção, encontra-se Do- na Cremilda. Ela não tira os olhos da vitrine. Parece estar deslumbrada com o que vê.
Aproximo-me, sem fazer qualquer ruído, e fico observando, por trás dela, a cerca de dois metros de distância. Ela estende uma das mãos e parece fazer um desenho sobre o vidro. Sacode a cabeça e sorri. Ao se voltar, quase se choca comigo.
- Ué, você por aí, meu filho? Quase mata a velha de susto!
- Ahá, peguei a senhora. Passou a vida inteira jurando que não era vaidosa e está aí, em frente a essa vitrine há uma porção de tempo, apreciando as lingéries, as camisolas de dormir e outros artigos, que o respeito à senhora, me impede de dizer os nomes.
- Que bobagem, meu filho. A velha está cansada de ouvir falar em sutiã, calcinha, biquíni, fio dental. Mas você está enganado. Eu não estava dando a menor importância às peças expostas. Meu tempo de gostar disso já ficou muito pra trás.
- Ah, é? Então o que fazia parada aí em frente, todo esse tempo?
- Vou propor uma coisa a você, meu filho. Como hoje está um calor do cão, acho melhor a gente se sentar num barzinho e tomar uns refrescos, enquanto eu lhe explico o meu interesse pelo conteúdo da vitrine. Você aceita?
- Da última vez que fomos tomar refresco, a senhora fez um drama na hora que a conta chegou e até ameaçou não falar mais comigo se eu pagasse. Como ficamos hoje?
- Vou relembrar pra você um velho ditado, que a meninada de hoje não usa e nem sei se conhece: “Quem convida, dá banquete”. Recebi minha pensão ontem e faço questão de pagar a conta. Aceita ou não a minha proposta e condição?
Passei um braço em torno dos ombros miúdos da boa amiga e caminhamos até um barzinho, com cadeiras na calçada.
– Aqui está ótimo, meu filho. Vamos pôr em dia nossas conversas.
– Antes de mais nada, minha cara, explique-me aquela história de estar apreciando as roupas íntimas femininas naquela vitrine.
- Para que eu possa explicar, tenho de saber, antes, se você também olhou o que estava lá na vitrine.
Fiquei meio embaraçado e a minha amiga, notando, me tranquilizou:
- Pode deixar, meu filho, a velha é discreta e não vai contar pra ninguém que você estava dando uma espiadinha nas calcinhas e camisolas. Afinal, é homem e poderia estar querendo dar peças íntimas de presente. Supondo que você viu, com atenção, tudo que havia em exposição, certamente deve ter reparado, também, na grande quantidade de corações espalha-
dos por lá. Você viu?
- Vi, Dona Cremilda.
- Que bom. Eram corações vermelhos, bem recortadinhos, naquele estilo tradicional, que certamente, nem de longe lembra corações de verdade, que eu já vi em fotografias de revistas, mas é como se costuma usar como símbolo.
- Vai me dizer que a senhora ficou parada um tempão, só olhando para os coraçõezinhos vermelhos?
- No princípio, sim, mas depois o meu pensamento foi pra mais longe e acabou por me trazer uma imagem que se repete, a toda hora, por qualquer motivo, e que já me enche a paciência, só de pensar.
- E que imagem é essa, Dona Cremilda?
- Pare de me interromper. Vá tomando o seu refresco e me deixe acabar a minha história, como você mesmo chama as minhas explicações sobre o que acontece em minha volta ou no mundo. Um jogador de futebol faz um gol, corre em direção à câmara de televisão e...lá vem o coração feito com os dedos; uma pessoa é entrevistada na rua, sobre um assunto qualquer e, ao final...lá vem o coração de dedos; você dá uma esmola a um pobre, na rua e ele, enquanto agradece com as convencionais palavras, aproveita e faz...o coraçãozinho de dedos.
Era por isso que eu curtia cada coração da vitrine, meu filho. Eles correm o risco de desaparecer como símbolo de bondade e de amor. Sabe, daqui a pouco algum gaiato, vai substituir o tradicional coração vermelho até nas frases que já se tornaram conhecidas por todos. Vai ficar assim: “Eu (coração de dedinhos) o Rio de Janeiro”. “Eu (coração de dedinhos) meus filhos”.
- Até que é engraçadinho...
- Juro que se alguém fizer mais um coração de dedinhos, hoje, eu parto para cima, meu filho. Minha cota de 20 por dia está esgotada. Já tô ficando até com saudades daqueles finais de frases de alguns tempos atrás, quando se dizia: “Um beijo no coração” ou: “Um beijo na alma”. Acho que estamos caminhando para a sociedade muda, meu filho...
- Garçom, mais dois tamarindos! E a conta é aqui, com esta senhora, antes que ela se arrependa!