O derradeiro -- Crônica do último dia
AQUI choveu durante todo o dia. Nos intervalos dos temporais uma insistente garoa fazia-se sentir. Assim passamos o dia, sob essa úmida atmosfera de melancolia. Acho que já vivi uma quantidade suficiente de trocas de calendário para dizer que o último dia do ano não é feliz. Sim, porque ele é um símbolo de morte; é o termo de um ciclo. No entanto, dizer que o último dia do ano também aponta para a esperança do porvir não é — absolutamente — incorreto. Mais do que uma atmosfera de melancolia, no derradeiro dia do ano respiramos os ares da ambiguidade.
Pôr-do-sol. Passo rememorando os fatos do dia a fim de encontrar uma ligação entre eles; busco por aquela concatenação de coisas que denuncia o sentimento geral do momento. Desde o café da manhã, à volta da mesa com os mais velhos da casa, paira uma sutil expectativa. Devo dizer que, com a passagem do tempo, essa expectativa mudou; perdeu em cor o que ganhou em profundidade. Franzo a testa e adquiro um semblante de agonia: nunca foi fácil pensar em meio à zorra advinda da rua.
O barulho incessante desta Babel parece que ganha dimensões mais densas, mais vivas, mais expressivas, como os grunhidos esganiçados dos suínos antes de irem para a mesa com a maçã entre os dentes. Não sei precisar desde quando o júbilo do fim do ano vem em companhia do incômodo pelo barulho. É estranho. O fechamento de um ciclo de vida exige a reflexão, é necessário pensar sobre o significado dos fatos pretéritos a fim de examinar a consciência; mas como pensar em meio ao barulho que se tornou a principal característica de um momento que, em outras eras, talvez, fosse consagrado — e dedicado — à reflexão?
Se eu estivesse escrevendo à máquina — eu tenho uma formidável coleção de máquinas de escrever — ou a bico de pena — também tenho alguns — agora mesmo seria necessário usar o mata-borrão ou arrancar a folha envolta no cilindro da máquina e lançá-la no lixo. Na rua, um moleque acaba de mandar para os ares os destroços de uma lata de alumínio com a explosão de uma bomba de artifício. As explosões acontecem com uma frequência perturbadora.
Justiça seja feita: o réveillon deste ano não está tão barulhento quanto os últimos — pelo menos os últimos três. O motivo é evidente: a chuva. Este fenômeno da natureza serviu-nos como uma invocação daquela melancolia própria desta época do ano. Penso nos meus ancestrais, nos nossos ancestrais que ergueram suas taças de júbilo no derradeiro dia de 1938. Seus votos, claro, foram de bênçãos, de prosperidade e de paz; mas a guerra — a mais sangrenta guerra — que o ano novo trouxe-lhes mudou tudo. Fora uma mudança radical, tão radical a ponto de mudar para sempre sua disposição de espírito. Uma geração antes, durante os festejos do réveillon de 1913, acontecera a mesma coisa. Tenho de sair agora, corro o risco de perder o derradeiro pedaço do leitão.