DO JEITO QUE A COISA VAI...
Caminho distraidamente pela praia, e sou des-pertado de meus pensamentos pelo alarido de um grupo carregando faixas e cartazes. Antes mesmo de conseguir ler qualquer deles, identifico minha amiga, Marie Antoinette Barros de Moncoeur, a Totonha, como prefere ser chamada ― liderando um movimento de protesto. As faixas e cartazes são erguidos e abaixados freneticamente, tudo acompanhado de gritos e palavras de ordem:
“Abaixo os monumentos nos morros!”
“Fora com o Cristo do Corcovado: o Brasil não tem religião oficial!”
“Queremos os bondinhos aéreos fora do Pão-de-Açúcar!”
“A floresta é pra ver, não é pra morar!”
“A calçada é de todos: abaixo os puxadinhos!”
“Fim dos xous nas praias: queremos respeito à lei do silêncio!” (Totonha é defensora, também, de se escrever as palavras de outras línguas conforme se pronuncia em Português).
Esses foram alguns dos cartazes que consegui ler. Havia muitos mais. Embaralhei-me pelo meio dos manifestantes até chegar à Totonha.
- E aí, amiga! Sempre ativista! - berrei ao seu ouvido para me fazer entendido, tamanha a algazarra.
- Vamos sair um pouco que eu explico tudo - disse-me ela.
Puxou-me pelo braço e atravessamos a rua, entrando numa transversal. Longe do barulho, pude- mos conversar com calma.
- É o seguinte - foi logo dizendo a Totonha. Você sabe que eu sempre combati a construção, seja lá do que fosse, nos morros da cidade. Escrevi para jornais, revistas, autoridades, protestando pela presença daquele Cristo engomado e sem expressão lá no alto do nosso Corcovado. Tudo inútil! Nunca me deram a menor atenção. Já fui chamada de doida por amigos e por gente que andou lendo minhas cartas. Criei um saite na Internete e logo apareceu um engraçadinho que abriu um xate, no Orcute e lhe deu o singular nome de lavemaqueladoidadatotonha, mas eu aguentei firme!
- Olhe aqui, minha amiga. Qual é a sua, afinal? Acha que as autoridades, ainda que reconhecendo suas razões, seriam capazes de remover o Cristo e retirar os bondinhos do Pão-de Açúcar? Não me faça duvidar da sua inteligência...
- Eu sei disso, eu sei disso! Só que resolvi apelar para esse tipo de movimento que você está vendo e ouvindo. Não vai acontecer remoção alguma daquelas tralhas que emporcalham os morros, mas, certamente, vou me fazer conhecida de muita gente que até apoia o restante das reivindicações. Em algumas dessas eu nem acredito mais, mas elas servem para acrescentar gente ao movimento. Nas próximas eleições munici- pais, vou me candidatar a vereadora por um desses partidos nanicos, numa campanha onde não se gaste muito dinheiro e, se eleita for - como espero - quem sabe não consigo até atender a alguns itens de minha plataforma eleitoral?
- Quem diria! A outrora idealista Totonha, aderindo ao populismo...Você sabe que quase nada do que está prometendo tem chance de se transformar em rea- lidade.
- Tô sabendo disso. Acontece que sou mulher de ideias, meu caro. Se as promessas não puderem ser atendidas, faço novas. Entro no jogo político. Alguma coisa acabo conseguindo e aí parto para a campanha da reeleição, com base em novas bandeiras e na eterna luta contra os que vivem da espoliação do povo! Depois de dois mandatos eu me aposento e volto para a minha vidinha. Aí parto para escrever o meu livro de memórias, que certamente será lançado em um coquetel
na Câmara dos Vereadores e embolso mais algum, para garantir uma velhice tranquila.
- Quanta imoralidade, Totonha! Não posso acreditar no que estou ouvindo...
- Deixe-se de moralismos e caia na real, homem. Meu sonho secreto de consumo sempre foi viver numa ilha grega, longe desse mafuá em que se transformou o Rio de Janeiro. Ao diabo com o bondinho e o Cristo! - Ele que me perdoe!. Quero mais é que os morros não tenham uma só árvore para contar a história da outrora bela Mata Atlântica; que as calçadas acabem e todo mundo tenha de circular entre carros, motos, bicicletas e patins; que os tímpanos dos jovens arrebentem, violados pelos decibéis de seus cada vez mais poderosos equipamentos de som; que num dos morros da cidade, já totalmente devastado de vegetação, seja erguida uma gigantesca estátua de Zumbi dos Palmares, em substituição àquela pobre cabeça do herói, que vive eternamente pichada, lá pelas bandas da Praça Onze. Epa! O pessoal já deve estar notando a minha ausência. É preciso voltar aos braços do povo. Vá por mim: enquanto você for sério nesta terra, ninguém vai lhe prestar a menor atenção. Tem de dar uma de louco. Lembra do Enéas? A maior votação que um Deputado Federal já teve. Se quiser saber mais um pouco dos meus planos, continuo morando no mesmo endereço. Por enquanto só posso lhe oferecer chá com torradas e Coca-Cola, mas logo troco isso por uísque doze anos e canapés de caviar se é que você gosta disso, porque eu detesto! Abraços, beijinhos e até!
Fiquei vários minutos parado, sem ação, olhando o “santinho” que a Totonha me havia deixado, antes de voltar para os seus liderados. Será que a minha amiga está com a razão e eu tenho feito papel de idiota esses anos todos, pregando princípios de uma moral que a sociedade pós-moderna pulverizou? Quem sabe eu não poderia chegar a Deputado Federal me unindo à Totonha? Depois, uma vaguinha num Ministério qualquer e, finalmente, um encontro com a minha amiga,
lá pelas bandas das ilhas gregas.
É, do jeito que a coisa vai, muito em breve, os atuais significados da palavra “honesto” vão ser apa- gados dos Dicionários ou substituídos pelos seguintes:
a) diz-se daquele que ainda insiste em manter princípios de moral, anteriores aos anos 1980;
b) o mesmo que otário, idiota, bobo, panaca, babaca.
Disparei pela rua, rumo aos manifestantes.
- Espere, Totonha! Precisamos acabar essa nossa conversa, minha líder!