Dois patinhos na lagoa
Hoje, quando eu acordei, eu disse: "Hoje, não. Hoje, não. Pela primeira vez no ano, em uma sexta-feira, hoje, não". Mas acordei, às 5h da manhã, e encontrei a noite escura, comum nos dias normais. Levantei-me e fui caminhar. Na volta mudei de ideia. A partir das 9h da manhã, comecei. Bebi, bebo e beberei, em gratidão e memória à ruiva. Aliás, não apenas em memória e gratidão, mas principalmente em reconhecimento a sua história e expectativas trabalhistas.
Ontem, após o fim do expediente postal, quando retornava de São José da Laje em rota à União, do meu lado sentou-se uma ruiva. De início, não notei sua presença, no entanto, bastaram alguns segundos e três lágrimas para que eu a notasse. Ela sentou-se e, de súbito, botou-se a chorar. Eu, apesar de meio aerionoso no espaço, quis saber o porquê. Ela me revelou o motivo. Disse que não era dor física, mas a da despedida, a de quem é forçado a deixar os seus para seguir sobrevivendo e com o mínimo de dignidade.
Ela que tem 26 anos, nenhum filho, amor de namorado ou marido muito menos, que deixa toda uma história para trás, que sai da zona rural da Pindoba em direção ao Mato Grosso do Sul profundo, que vai pegar dois aviões e três ônibus para chegar ao destino, ela que tem um metro e setenta, que chega, que senta a meu lado, que antes me pede licença, que me dá Boa Tarde, ela que usa Charisma da Avon, essa ruiva me faz pensar que neste 31 de dezembro, como na maior parte dos demais 31 de dezembro dos anos anteriores, me faz pensar que estou muito distante de ter um Feliz Ano Novo; que 2022 não será um ano novo, será apenas um novo ano, possivelmente cheio de injustiças, inflação, desemprego e balas perdidas.
Quando lhe pergunto de que sentirá saudade de União, ela me diz que "apenas de alguns familiares e amigos", que "o resto já era", expressão que me agrada e nos faz rir, ainda que por breve momento, porque logo desceremos e seguiremos caminhos opostos e ao mesmo tempo congruentes.
A esta hora ela deve estar na estrada, em sua primeira condução, talvez até dormindo, cansada, mas esperançosa, procurando se realocar no mundo, crendo em Deus Todo Poderoso e já com saudade enorme de alguns familiares e amigos. De minha parte, estou ainda aqui, do lado Nordeste do país, descrente e pessimista, mas igualmente procurando me realçar, não no mundo, porque nele nunca estive alocado, mas me realocar em mim mesmo.
Ela e eu, agora tão distantes e ao mesmo tempo tão próximos. Ela e eu. Ela lá e eu cá, dois patinhos na lagoa, muito longe de um Feliz Ano Novo. Mas, pelo menos, ainda vivos, graças a Deus.