Como dói a solidão...
E pensar que tudo começou com a uva passa.
Exatamente, a uva passa é a responsável pela solidão da dona Maria nas noites de Natal.
Tudo começou quando a dona Maria, que num 23 de dezembro qualquer, anunciou à família:
“Vou colocar uva passa no arroz”.
Casa cheia, 4 filhas, as meninas, em retaliação ao que dissera dona Maria, profetizaram:
“Se colocar uva passa este ano será o fim as ceias natalinas em casa”.
Dona Maria achou que era blefe e, irritada, tascou o dobro de uvas passas que colocaria normalmente.
Aliás, é assim mesmo que nós fazemos, não é?
Se alguém diz: Não faça algo, nós vamos lá fazemos só de pirraça. Pois é, dona Maria era como nós, pirracenta.
Foi o que bastou.
As meninas estavam cansadas de uvas passas. Dona Maria amava a “bichinha preta”, como carinhosamente referia-se à iguaria arroziliana.
Mas como tudo na vida tem um limite, as meninas sentiam-se oprimidas pela “tirana” dona Maria, que dava as ordens em casa e não admitia democracia no que se refere à ceia de Natal.
As meninas foram até à televisão, reclamaram com o pastor da igreja e até o papa Francisco entrou na jogada. Sem conversa, dona Maria não admitia ervilha, milho, carne seca ou qualquer outra coisa no arroz, teria mesmo que ser uva passa.
A vingança, contudo, é prato que se come sem uva passa e não tardou.
Paulinha parou de comer carne vermelha por causa da teimosia da mãe.
Rúbia anunciou que só comeria peixe, ou melhor, caviar. Mas no Natal? Indagou dona Maria. Isto mesmo, respondeu a atrevida filha, no Natal.
Mariinha, a filha caçula, só de raiva aderiu ao veganismo, ou melhor, ao veganismo seletivo, pois era vegana apenas no Natal, descobriram isso quando, certa vez, a pegaram com um prato cheio de picanha numa churrascaria no centro de São Paulo.
A outra filha, Solange, decidiu passar as ceias de Natal com a sogra, que, alérgica a uva passa, jamais colocaria a “bichinha preta” no arroz.
Foi assim que, a partir de mil novecentos e alguma coisa a dona Maria começou a passar as ceias de Natal sozinha, solitária, com seu prato de arroz repleto de uva passa.
É o resultado da intransigência, da intolerância de dona Maria em não aceitar o diferente.
Eis que agora está sozinha, mesa farta de comida, mas sem os afetos...
Eu acho é pouco, dona Maria colheu o que plantou...
Já dizia o sambista:
Bem feito... a intolerância é amiga da solidão...
Quem planta uva passa colhe confusão...