A Revolta das Mocinhas

Quando eu sinto demais meus dedos coçam, minha mão formiga, minha cabeça entra em erupção. Até que eu possa ter as palavras a meu serviço o caos instaura-se em mim, e somente o desabafo das palavras faz toda confusão dos meus sentimentos entra em fila indiana. E só então eu sou capaz de respirar.

É quase uma obsessão. Porque eu sei que no mundo das palavras eu sou a grande poderosa, a domadora do universo, a grande controladora. E quando eu tenho sentimentos grandes, capazes de me engolir, eu me sinto incrivelmente pequena, ridiculamente frágil. E as palavras são meu grande golpe, minha ditadura interior. Elas reafirmam a imensidão de mim.

Elas podem me bater, me espancar, ou acariciar meu narcisismo e minhas necessidades tão humanas. Mas elas o fazem na hora certa, da forma como eu, a grande arquiteta, ordenar que as coisas sejam feitas.

E enquanto somente eu as leio, trancafiando-as num diário escondido, para o deleite dos meus olhos e orgulho, elas são assim... Elas eram assim.

Hoje em dia eu assisto, ainda com o lápis entre os dedos, estatelada de choque, a revolta das palavras! As minhas próprias palavras!

Antes eram tão cautelosas, tão mimadas, tão perfeitamente acomodadas aos meus pensamentos... E agora depravaram-se completamente e rebelaram-se contra mim!

Eu sei exatamente quando isso aconteceu. Foi quando elas, exibicionistas, foram vistas por outros olhos!

Bastou-me dar asas e liberdade àquilo que escrevo, para que meus leitores transfigurassem todas as minhas palavras!

Sim, eu os estou acusando! Como ousam vocês, leitores, arruinar com toda a minha onipotência, ler em minhas palavras coisas que não escrevi? Pelo menos, que eu achava não ter escrito, ou não queria...

Meus leitores, sim, destruíram a minha gramática corretíssima, e tornaram-na um dialeto plural. Perverteram o meu lirismo.

Eu não sei ver as minhas palavras corrompidas por explicações que não sejam apenas e somente as minhas.

Eu sou egoísta, sim! Minhas palavras são meus servos, meus escravos, e os leitores distribuem cartas de alforria a elas.

E elas gostam disso, ah, sim, elas adoram rebelar-se!

Minhas palavras agora caçoam de mim, riem das minhas intenções, constroem-se sozinhas e despem-se, insinuando-se para qualquer um que esteja disposto a contemplá-las. Como perderam seu pudor! Minhas palavras tornaram-se tão maiores do que eu... Elas já nem são mais minhas, são de qualquer um que olhe para elas com a atenção que elas mesmas impõem.

E eu sou como um velho caçador de borboletas que perdeu todas as suas pequeninas ao deixar o pote espatifar-se no chão ao fim do dia de caçada.

As borboletas que bateram suas asas coloridas, não porque fugiam dele, apenas ardiam por liberdade. Elas pertenciam ao mundo, e sua beleza não seria mais viva se estivessem esticadas dentro de quadros.

E as borboletas também estão ao meu redor, escaparam.

Eu às vezes as odeio, odeio sua revolta, o modo como sua cores mudam conforme a luz, a forma como pousam no bem na ponta do meu nariz, sabendo que já foram minhas.

E tenho ciúmes delas também.

Sei que elas são mais bonitas livres.

Alessandra Martins
Enviado por Alessandra Martins em 18/11/2007
Reeditado em 18/02/2008
Código do texto: T741661
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