Quem deve falar?

Olhar o Outro a partir do olhar de quem olha, não é olhar o Outro na mesma perspectiva de quem é olhado.

Essa distorção do olhar, igual a especulação no discurso, muda o sentido do olhar. No discurso, a especulação funciona como um atalho que o interlocutor usa para desqualificar seu interlocutor. É um ato traiçoeiro, igual ao pugilista que se utiliza de golpe na virilha, um golpe baixo e negativo na luta. O interlocutor que lança mão da especulação para desqualificar seu interlocutor, age como ao mal pugilista. É desonesto na arte do debate.

Olhar o Outro com o olhar alheio ao próprio olhar do Outro, é negar-lhe a fala a partir de sua vivência. É usurpar seu lugar na própria história. É um ato eivado de autoritarismo.

Que o Outro fale com sua própria voz. É disso que se trata quando se diz que lutamos por uma sociedade mais democrática.

E disso que se trata quando se pensa democraticamente de maneira sincera e inegociável.

É bonito falar em direitos dos outros a partir de uma lógica superior. É se "colocar" num lugar, com o qual, não tem nenhuma relação e afinidade. Sabe, porque não respeita a história, que aquele mundo, ou lugar, não o conecta com nada do que diz saber. É a ética do senhor que, em relação ao escravo, tem a certeza que o Outro é destituído de saberes. Por isso, fala em seu nome, com suas ciências e visões de mundo próprias. É arrogante, é torpe.

Quando se fala como quem detém o monopólio da fala, mais do que ser autoritário, é agir como àquele sujeito que se olha no espelho, e como ao gorila que estufa o peito para indicar que o território é seu, o sujeito do espelho, narcísico que é, diz "sou foda".

Ciente da sua onipresença e soberba postura, o sujeito que se apropria da fala do Outro, com o hipócrita discurso de que conhece as dores e os anseios do Outro como se fossem seus, esse sujeito, além de usurpar o direito do Outro a sua própria história, também pensa poder ser seu porta voz.

Nada mais falacioso e mal intencionado que trazer para si discursos pertencentes a outros grupos que não o seu. Não se trata de negar-lhe que possa ter suas impressões e opiniões próprias. Trata-se de reconhecer que dar-se o direito de falar em lugar do Outro é furto étnico, linguístico e histórico

É anular o Outro naquilo que o define, isto é, impedir que o Outro exista, é um ato atroz. É desejar, com a anulação do Outro, que o grupo desapareça, que se anule para que outro grupo se destaque, o grupo do usurpador. Isso atende pelo nome de genocídio linguístico. É diferente do preconceito linguístico porque esse não vislumbra a eliminação do Outro, porém, como medida de como uma sociedade se comporta, o preconceito linguístico é tão nefasto quanto.

É nesse instante, como um ato de resistência, que o Outro deve tomar para si o controle de sua história.

É não permitir que outro se aproprie de discursos alheio como medida de sobrevivência.

Que o Outro, por si e por seus próprios meios e discursos, chegue e se estabeleça. Que ocupe, tantos quanto tantos outros, os lugares e as audiências.

Eis aí o grande momento. Eis, como o fio de água que indica que o rio não secou, que ainda pode jorrar, o momento em que veremos todos sendo seus legítimos porta vozes, sem intermediações, sem "representantes".

Quem deve falar senão àquele que vivência sua história. Quem deve falar senão o sujeito que sofre na pele as dores que outro, um terceiro, é apenas observador, diz saber que o dor Outro sente. Não! Mil vezes não. Que o Outro fale por si na sua própria voz.