RENÚNCIAS
Era um dia de junho, daqueles de tempo com cara amarrada e chuva miúda ranheta, que já durava uma semana. O ar úmido e frio da São Sebastião convidava a permanecer debaixo das cobertas quentes e macias, mas era preciso levantar para mais um dia de rotina: lavar o rosto, escovar os dentes, pentear os cabelos, tomar o café da manhã lendo as notícias da véspera, no jornal deixado à porta pelo zelador do prédio, sempre bem cedinho, mesmo com o inverno recomendando um certo atraso, que certamente seria perdoado pelo assinante.
Preguiçosamente olho para a primeira página e leio a manchete do dia:
PRESIDENTE RENUNCIA.
Vagarosamente deixo de lado o matutino e me ponho a refletir, entre perplexo e desanimado:
" Pode uma coisa dessas? Com somente quatro meses de governo e mais um presidente deixa de cumprir o mandato. Recapitulando: Tancredo morreu antes de assumir. Já dizia um amigo meu, cinicamente, que o mineiro foi nosso melhor presidente, posto que ninguém o pôde acusar de qualquer conduta fora dos padrões éticos convencionais, coisa rara há muito tempo em nosso país. Depois, Collor foi escorraçado por apadrinhar um Chefe de Campanha trapalhão, além de seus delírios megalômanos, simbolizados pelos famosos Jardins da Casa da Dinda e de sua arrogância sem qualquer respaldo político. Antes deles, vale lembrar o meteórico e catastrófico período de sete meses de governo do destrambelhado Jânio Quadros, com sua proibição de rinhas de galo no país inteiro. Isto sem esquecer o suicídio de Vargas, encerrando seu único mandato obtido pelo voto popular, às vésperas de novas eleições.
Agora, vem o Lula com essa bagagem de mihões de votos e depositário das esperanças da grande massa trabalhadora desse país e renuncia, batendo a marca de JQ. Inacreditável. Vou ligar, já, já, para os meus amigos. Precisamos botar a boca no mundo. Fazer protestos. Xingar o PT. Dizer que os “rebeldes” é que tinham razão. Que o Lula é um frouxo. Ou então acusar o Bush de estar por trás de tudo isso, de olho na Amazônia e no petróleo da bacia de Campos. “Yankees, go home!” Se a renúncia for coisa definitiva, vamos promover a campanha das “Eleições Já” e apresentar o deputado Babá como candidato de consenso nacional, com o José Alencar como vice, ou o mercado despenca.
A essa altura, já excitado e fervendo de indignação, levanto-me em busca do telefone e esbarro no jornal que ficara em cima da mesa, ao meu lado. Ele vai ao chão e abre-se, justo na página em que a matéria sobre a renúncia vinha desenvolvida, mostrando, além do texto, fotos do presidente: um homem alto, magro, aparentando uns sessenta anos. A seu lado aparecia um tanque de guerra e gente espalhada pelas ruas, provavelmente sem entender muito do que acontecia.
Ao ler, pude constatar que o presidente era de um longínquo país da Ásia, e estava sendo afastado, por pressão dos militares, acusado de ligações com grupos comunistas que apoiavam suas medidas populistas.
É o que acontece quando se acorda num dia frio e cai-se na asneira de ler manchete de jornal, tirando conclusões apressadas. Melhor ficar na cama.
Deixei o café de lado e mergulhei num gostoso sono, por horas a fio, renunciando à minha rotina.