CENAS DE FIM DE ANO

Ele se aproxima. Sei – ou melhor, sinto – antes de vê-lo: a fedentina chega antes. O caminhão para em frente ao prédio. Não vai levar os sacos com entulho que um certo doutor largou ali. Eu sei, os garis sabem, o doutor também: o caminhão do lixo leva lixo, entulho é outro departamento. Os garis recolhem as sacolas com papel higiênico, sobras de comida, frascos de perfume e detergente, garrafas, pacotes de biscoito, latas de sardinha... a embalagem do chocotone que ontem devorei sozinho enquanto passava a novela. Na carroceria, repousa um bebê com o vestido roto e sujo. Com o único olhinho de plástico, mira o céu ainda cinzento; a boca ligeiramente aberta parece sorrir, escancarando felicidade. O caminhão segue, levando a fedentina, os restos de nossa humanidade, o bebê que alegrará a noite de Natal de alguma menina. Os sacos com entulho do doutor ficaram, mais uma vez.

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Mandou-nos cortar o cabelo para a formatura. Mas não deixa pra cortar no dia se não fica com cara de debiloide, disse enquanto nos esperava copiar a matéria do quadro. Rimos. A gente sempre ria das suas palavras. Era irônica, engraçada ao seu estilo. Não sei se haveria, nos dias de hoje, espaço para seu humor... nos longínquos anos 1990 havia.

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O recesso se aproxima. Há filas no corredor do fórum. Todo ano a cena se repete, feito tradição: os doutores esperam seus alvarás. Com eles, imagino, compram os presentes das crianças, o peru pro Natal. O próximo, anuncia o estagiário. O doutor lhe entrega um papel; isso aqui é 7 ou 4, doutor, pergunta o estagiário. É 9, dígito 9, o doutor responde secando com a mão o suor da testa. O estagiário vai ao computador, pesquisa, volta com as folhas impressas. O doutor rabisca o que chama de assinatura, vai sem dizer sequer “feliz natal”.

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Armaram o presépio na praça. Todo ano são as mesmas peças, nem vale a pena descer o morro para fotografá-lo. A manjedoura, contudo, não está vazia dessa vez. Devia estar, afinal, o Menino-Deus só descerá à Terra dia 25. Mas hoje de manhã o presépio acordou diferente: um vira-lata, desses cansados de tanto abandono e tanto penar, dorme na manjedoura. Protege-se da chuva, aquece o berço para o Menino que vai chegar.

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Pedimos-lhe para ajudar na escolha das músicas para a missa de formatura. Aceitou. Só não admitiu que cantássemos Coração de Estudante. Não aguento mais: todo ano cantam essa música... não gosto, me faz lembrar o Tancredo. Rimos. A gente sempre ria. Teve quem risse sem sequer saber quem era o tal Tancredo... eu, pelo menos, sabia que era um velhinho careca que morrera antes de virar presidente. Formamos. Teve solenidade no salão da Scipião Rocha, teve missa, teve música... menos “a música do Tancredo”. D. Edith era incisiva; porreta, como diria o outro.

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Próximo. A doutora se aproxima: vim ontem duas vezes e não estava pronto, será que levo hoje meu alvará? Acentuou a possessividade do pronome, largou a bolsa no balcão. O frasco com álcool em gel balançou, a caneta ficou pra lá e pra cá feito um pêndulo pendurada pelo barbante. O estagiário pegou o andamento impresso, pesquisou no computador: ainda não foi assinado, doutora. Vai ser preciso eu despachar com o juiz, gente, pra receber meu alvará antes do recesso, indagou seus pares na fila acentuando novamente o pronome. Silêncio. Levou a bolsa ao ombro, saiu socando os sapatos pelo corredor, passou direto do gabinete, desceu a escada. Próximo!

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Na praça, falava alto, gesticulava muito: espírito de Natal uma pinoia, tudo hipocrisia, ninguém presta, só se aproximam dos outros por interesse. Ao seu lado, eu pensava nos presentes que, segundo a mãe, só seriam abertos após a meia-noite. Dois taxistas, encostados no carro, também o ouviam, rindo. Criticava as pessoas que iam à Missa do Galo: lambedores de saco de padre, lá dentro posam de santinhos com a boca cheia de hóstia e aqui fora traem, roubam, fazem um inferno... Não acredito em nada disso, é tudo papeata, invenção para alienar o povo e tomar o dinheiro da gente. As pessoas passavam: o palavrório de sempre, seus olhos diziam. Zezé se aproximou – um infeliz que vende o almoço pra tentar comprar a janta, eu o ouvi dizer certa vez – trazia um embrulho sob a manga puída da camisa. Pro senhor, disse, esticando o embrulho. Ele franziu o cenho, recebeu o presente. Os dedos grossos cortaram o barbante, rasgaram o papel. Os taxistas e eu olhamos sobre seu ombro: um quadro com a imagem da Padroeira e, ao fundo, a basílica. Zezé sorriu, desejou-nos “feliz Natal”, subiu a escadaria da igreja. Com o quadro na mão, ele ficou a cismar, em silêncio.

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Todo final de ano íamos à casa da vó. O vô nos recebia no portão: vocês vão ficar até que dia, a voz arrastada de quem acordara com mau humor. Mas íamos mesmo assim, para comer o bolo da vó e as gelatinas que nunca endureciam, ganhar presentes e jogar rosa branca no Paraíba na virada do ano... na casa da vó não havia decoração natalina: tudo era igual, o ano todo. Até que um dia apareceu um Papai Noel que andava e brilhava os olhos... Veio do Paraguai, a vó disse, colocando as pilhas. Esse Papai Noel é gay, olha como anda rebolando, disse o pai. Rimos. A gente sempre ria. Largado na poltrona, o vô resmungou de novo. E o boneco, alheio a tudo, continuou zanzando na sala, balançando o sino, colorindo o dia.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 26/12/2021
Código do texto: T7415333
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