PAPAI NOEL NÃO É NADA SEM OS DUENDES

Saio de casa sem pressa, para buscar meu peru no supermercado. É véspera de Natal e as pessoas parecem ter um propósito hoje que não tinham ontem. Espero encontrar pouca gente pela frente, mas nunca se sabe. Passo por diversos estabelecimentos que fecharam ao meio-dia, e por outros que não podem fechar para não estragar as festas. Como será que vão fazer depois? Dão um dia a mais de folga ou pagam hora extra?

Chego ao meu destino. Está lotado. Me concentro nas pessoas que estão trabalhando nessa jornada estendida. A maioria são jovens no primeiro emprego, e quem sabe, pela primeira vez, passando a véspera longe dos preparativos de casa. Pois há preparativos em todas as casas, uns mais simples e outros mais complicados, e presenciar a atividade faz parte do encanto de Natal para as crianças. Quando chegarem tudo estará pronto. Vão tomar um banho rápido e se juntar à parentela. Ou quem sabe, vão ficar até meia-noite no emprego, para as atividades de arrumação e reposição. E, sim, há fiscalização trabalhista lá e em todos os demais estabelecimentos dessa cidade, logo está tudo legalizado.

O que será que pensam naquele reino protegido pelos ossos frontal e parietal, que não logramos adentrar nem com a permissão do dono? Gostaria de parar um deles e perguntar como se veem no futuro. Não tem como formular essa pergunta de outra forma. O Eu deles daqui a cinco anos estará fazendo o quê, e como, e onde? Falemos apenas da ascensão social. Um trabalho bem feito e uma boa educação contam pontos, claro, e podem ascender a caixas e gerentes com o tempo – se aguentarem alguns anos de jornadas exaustivas em horários que vão das sete da manhã às vinte e uma ou vinte e duas horas, mais o tempo para limpar e ordenar tudo para o dia seguinte. Acho que esta peneira é brava. Vou ter que acrescentar “resistência física” aos requisitos, e tem que ser das boas. O que dirá da resistência emocional! Vão atender miríades de pessoas que agem com eles como patrões diante dos peões, e os poucos que agradecem têm o defeito de ser poucos.

Talvez em cinco anos eles nem estejam mais aqui. São filhos de proletários. São criados para ser o que puderem ser. A questão da ascensão social, para eles, é tema de novela. Pois é nas novelas que encontramos o mundo onde acontecem as coisas que não acontecem no mundo real. Pobre casa com rico, os maus são punidos, os bons triunfam e qualquer criança cega, paralítica, com Down ou rejeitada encontra um lar amoroso. Não é como aqui, onde equilibramos nossa resiliência com promessas de justiça futura e é mais fácil faltar alguma coisa em casa do que, digamos, encontrar o amor de sua vida andando pela pracinha.

Ser filho de proletário envolve muitas coisas. Desde a educação (aquela de casa, a que realmente nos forma) para ser honesto, trabalhador, não falar do que não sabe e tomar cuidado com os tostões. Até o aprendizado de viver com diversos irmãos dividindo um só banheiro. A dieta repetitiva na semana, para comer algo diferente só aos domingos. A esperança como valor principal de toda luta. E a inocência, meu Pai, essa inocência que perdura além da infância e colore sua juventude e vida adulta com veios de ternura.

E para além disso, como fazer a ascensão social. Estudam o máximo que podem, o que quer dizer que no final da adolescência já estão empregados, e os sonhos de faculdade, se houverem, serão outro critério de seleção entre os fortes e os mais fortes ainda. Passarão pela vida, talvez, sendo faxineiros, babás e porteiros. Saberão levantar uma parede e instalar um chuveiro, mas não lerão Neruda nem conquistarão Paris. Eu acho que eles têm direito a Neruda e a Paris. Admirarão a pessoa que tem um “bom emprego”, colocando nessa categoria qualquer um que aceite o atestado sem descontar o dia. Terão muita gratidão pelos pais e sempre tentarão retribuir, quem sabe sonhando em dar uma casa para os velhos ou, mais modestamente, chegar com uma nota de cem para ajudar em casa todo mês. Irão ao Posto de Saúde se houver algo errado, e se alegrarão quando não for nada grave, pois não podem parar. Todo santo dia de suas vidas devem vender seu tempo para o bem do patrão. É urgente que façam isso, que renunciem à infância o mais rápido possível, que adotem bem cedo a economia dos pais, para atender ao instinto de sobrevivência. Sonhos serão reformatados para caber no horário, a mente será adestrada para aceitar o inevitável (mas talvez nunca aceite), e seguirão sua vida de atendentes, garçons e técnicos.

As profissões mais rentáveis, como médico ou analista de TI, estarão fora de seu alcance devido à dificuldade para estudar. Quantos talentos irão se perder por falta de qualificação profissional! E na maior parte das vezes, estarão recebendo salário que vão de mil e quinhentos por mês a dois mil e quinhentos. Pois se chegarem a ganhar três salários mínimos, já passam para a categoria dos 10% mais ricos do País. E é preciso que haja pobres para haver ricos.

Sinto vergonha do pouco que pudemos proteger esta nova geração da desigualdade. Mais ainda do quão pouco os conhecemos, falamos de seus sonhos, entendemos seus mecanismos de sobrevivência num mundo competitivo, os seus métodos para driblar o tédio e a falta de perspectiva, sua visão de mundo nesse nicho apertado onde lutam, a glória de sua fé e resiliência.

Nós não os ajudamos a sonhar nem a esquecer. Eles aprenderam por conta própria e o que se sucede no seu mundo mental, e entre eles, resta ser compreendido pelos que não vivenciam horários estafantes e salários apenas suficientes para o básico. Quem sabe eles, como jardineiros que são, façam renascer o Éden. Quem sabe ainda necessitamos de muito diálogo e envolvimento, inclusive dos empresários, para tornar todos os nichos confortáveis para todos. Mais vale sonhar na véspera de Natal do que chorar o ano todo.

Um mundo deve haver em que as crianças do Brejo da Cruz não precisem mais comer luz.

Tangará da Serra, 25/12/2021.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 25/12/2021
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