Então é Natal
Hoje acordei cedo, como é de lei, e com uma preguiça enorme, como é de costume. Uma preguiça agravada pela data, naturalmente, mas não a ponto de me impedir de exercer uma das atividades que mais aprecio na vida e que me serve como antídoto à preguiça cotidiana: caminhar.
São 5h da manhã, e saio à rua para ver se ela, a rua, ainda está lá . Está. De ressaca, silenciosa, parada e recendendo a álcool. Não me impressiono com a descoberta. Afinal, para onde ela iria, bêbada, em uma manhã de Natal, às 5h e com parte do comércio ainda fechado? O que me surpreende, portanto, não é seu silêncio, sua inércia, sua embriaguez incomum, sua ressaca de dar dó. Está absolvida, não apenas porque hoje é Natal (e no Natal nossos excessos são vistos como menos excessivos), mas principalmente por perdoar minha sobriedade desabitual.
Geralmente, às 5h da manhã de sábado, sou eu o ébrio, o silencioso, quem recende a álcool. Mas hoje nossos papéis se inverteram. Por isso mesmo, não venho aqui recriminá-la, nem muito menos lhe desejar Feliz Natal. Sei quanto somos errados, quanto somos errantes, sempre na estrada, sempre distantes. Sabemos disso na prática, muito antes da Kid Abelha teorizar.
Daí que a gente, a rua e eu, olhamos este casal que anda de braços dados à frente de nossos olhos. É um casal formado por duas mulheres, uma usa um vestido vermelho red, a outra longos cabelos amarelos yellow; a de vestido vermelho red leva à mão uma lata de Skol e, entre um passo e outro, para e oferece um gole ofegante a de cabelos yellow; esta aceita o gole e o retribui com um beijo.
A gente olha este casal vagar e não sabemos de onde veio, para onde vai, qual seu signo astral, tipo sanguíneo, e é nessa indecisão, nesse mistério, que reside toda nossa felicidade.
Como é bom sabermos o mínimo sobre o máximo de pessoas. Assim, a gente pode tropeçar na rua e simular uma corridinha para disfarçar; a gente pode desejar Feliz Natal sem remorso algum; a gente pode sermos nós mesmos. Como elas não nos conhecem, não conhecem nossos cacoetes, nossos vícios físicos e morais, estamos inocentados. Em alguns ocasiões, como é o caso, até podem nos desejar Feliz Natal, mesmo a gente sabendo tratar-se apenas de mais um sábado, cinco da manhã, com o dólar a R$ 5,67, o PIB em baixa e o Índice IBOVESPA nas alturas.
Nada disso importa, porque então é Natal, tempo de ser feliz. Mas, se eu pudesse e meu dinheiro desse, o que eu queria mesmo é que sempre fosse sábado, e de preferência às cinco da manhã.