Minha terra minhas gentes (Os mendigos da minha terra...)

Não será hoje o melhor dia, nem talvez esta a melhor hora para escrever certas coisas (algumas ), mas por vezes o coração pede que deixe extravasar a emoção com tudo o que existe dentro dele e foi assim hoje, precisamente na véspera de Natal. Meu coração bateu mais forte , “falou” mais alto e muito devido ao começo da leitura de um livro de um meu amigo/irmão de infância. E só li ainda 50 folhas...Como estarei ao chegar ao final?

Quando coisas assim acontecem sento-me, agarro-me à caneta, escrevo, sinto, conto , lembro e me emociono.

Vivíamos numa região linda, paradoxalmente tão inóspita e silenciosa quanto o grande e “ancião” deserto do Namibe, mas paralelamente acolhedora com vidas felizes mas, tal como em qualquer outra cidade de Angola tinhamos mendigos de rua em Moçâmedes. A maioria deles vitimada pelo vicio do álcool pelo que me lembro, infelizmente um mal do qual muitos nativos não conseguiam se livrar. Mendigos que contavam histórias e nos deixaram histórias inesquecíveis algumas delas registradas em livros .

Muitos nativos vinham de suas tribos já com hábitos de vida ligados à bebida e foi a partir deles que passamos a conhecer a blunga, uma bebiba destilada feita com ananás mas que também podia ser feita de milho, mandioca ou massango, o murufi servido em cabaças, feito da seiva refrescante das palmeiras tipo um vinho, um sumo natural fermentado em apenas 24 hrs. Alguns deles eram contratados para diversos trabalhos logo à chegada à cidade, ou vinham até já com contratos acertados , mas era só chegar o recebimento dos salários ao fim do mês e as tascas ficavam cheias. A aguardente era a bebida preferida quando chegavam à cidade,.E por isso, tão quase que implícito, muitos deles iam parar às ruas pois tornavam-se viciados e por conseguinte doentes.

Hoje, véspera de Natal ano de 2021 ,lembrei-me deles pois perpetuam-se entre as sociedades mais civilizadas fatores que até então, em minha inocente vivência, achava ser ligados a outras épocas e outras vidas.

Falo de A.* uma mendiga de rua aqui do meu bairro, catadora de lixo alcoólatra. Conheço-a há um bom tempo, aqui amparada por moradores: comida, roupas e contas de farmácia é o que lhe damos. A.* não pode receber dinheiro pois vai imediatamente para o bar da esquina e não só. Descobri que também é viciada em jogo. Uma pessoa que causa dó. Já foi uma mãe de família e teve um bom emprego. Trabalhou num laboratório de medicamentos, era uma técnica com certa instrução e conhecimento. Foi isso que me chamou a atenção e o que também me faz parar várias vezes para conversar . Sim, é uma pessoa interessante e aprendo com ela. Sabe falar, se expressar, expor ideias e contar coisas.

Como pessoa que já teve uma vida social equilibrada tem seus gostos pessoais e não os esconde: é ela que escolhe o tipo de pão que eu lhe dou e o sabor do yogurt preferido. Pede-nos comida pois como moradora de rua não lhe permitem entrar nos locais para conseguir. Eu aceito seus pedidos sem maiores objeções mas desde que não me fale em dinheiro.

Para hoje , véspera de Natal, tínhamos um encontro marcado. Houve uma conversa engraçada há uns dias atrás e até receita de rabanadas feitas no forno ela me deu pois diz que não quer comer mais frituras . Como eu também não gosto mais, fiquei bem atenta à receita da A.*, fiz , e dividi com ela.

( já me veio interfonar aqui ao edificio pra dizer-me que estavam deliciosas)

E a tal conversa foi assim:

- A.*, o que você quer de presente de Natal?

- Me dás um gorro e uma camiseta sem mangas? Tudo preto, é a cor que eu mais uso.

- Ok. E se não encontrar a camiseta em preto liso, tem problema algum detalhe?

-Olha bem ela , se for um detalhe discreto podes comprar. Uma estampa com letras pequenas acho bem bonito.

-Tudo bem. Vou tentar.

Entrei em várias lojas pois os detalhes da camiseta eram diferentes do pedido dela mas continuei à procura. Afinal,era tão pouco o que ela queria para o Natal!...

Encontrei, finalmente . Pronto, pedido atendido.

Viu-me chegar ao longe e abriu um grande sorriso... Valeu!

E na nossa terra, Moçâmedes? Tantas histórias e tantos dos nossos a lembrar.... Figuras do povo que nos deixaram histórias...

Quem, entre os mais antigos, não lembra das conversas tão sábias e interessantes do Faquinhas? Faquinhas, não um mendigo pois tinha casa própria e trabalhava , um homem de força bruta mas de trato afável senhor de muita ciência e saberes quanto às coisas do mar e da vida. Muitas vezes o interrogavam sobre enigmas durante as suas longas viagens de cabotagem ao largo da costa angolana... Ao leme da sua barcaça de dois mastros e quatro velas, nas noites escuras como breu, tinha ele apenas como companhia o marulho das ondas do mar batendo no casco do navio e milhões de estrelas que por cima cintilavam. E naquela solidão iluminada pelos astros ,aquele universo sem fim com milhões de estrelas, galáxias e outras coisas mais do outro mundo.

E sobre os nossos mendigos...

Nomes como o Bacia, o Dominguinhos, o Samacaca o Guinguinda, o Caluquembe, mas o Faria das Baleias foi especial: seus bolsos do casaco estavam sempre cheios de relíquias. Os garotos perguntavam:

- O que é que aí tens, Faria?

- São segredos do mar! Segredos do mar que eu não posso desvendar – respondia ele

Isso aumentava o mistério sobre ele. Entretanto , ia contando as histórias que a sua mente arquitetava, histórias de gigantes, de Baleias Verdes que tudo venciam. Histórias mirabolantes , passadas com tanta convicção que todos iam para casa pensando no sr. Faria como quase um herói. O seu lugar era um banco do jardim da Avenida Conde do Bom- Fim ali perto do quiosque do Faustino . O Faria tinha atrás de si toda uma história de amor rejeitado que o terá levado à loucura. Coitado! Todo o homem que enlouquece por amor a uma mulher devia ter o amparo e a compaixão de Deus !

Ele era educadíssimo, e era assim a pedir esmola:- V.Exa. terá por acaso a bondade de dar uma esmolinha a este pobre desgraçado a quem as desumanidades da vida o afastaram da benção de Deus?"

Mas muitas vezes fazia questão de pagar o que precisava e não aceitava esmolas.

Quanta vida havia naquelas vidas!...

Amanhã espero encontrar A.* um pouquinho mais feliz. Vai me fazer bem!

Lana

24-12-2021

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Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 24/12/2021
Reeditado em 25/12/2021
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