A velha e os ratos
É noite de natal e a velha senhora ouve cantos vindos do telhado, os ratos imaginários consomem os seus ouvidos desajustados. Na imensa sala de visitas, sobre a cristaleira, quadros com fotografias antigas mostram rostos do passado. Agora sentada à mesa do café, xícaras de louça trincada duelam com as rugas em sua face, quem envelheceu mais? Quem o tempo marcou com o seu improvável começo, meio e fim?
Ela está no quarto de imensa cama vazia presa ao passado, ela caminha por corredores intermináveis à procura de refúgio e acha salas vazias. Ela ouve cantos inaudíveis. Os pássaros que sobrevoam o espaço emitem sons que reverberam a solidão pelas paredes. Agora, a busca em decifrar tais notas musicais, é apenas um grito de desespero e solidão.
A imensa casa de gente abastada, só não é maior que as recordações dos tempos de beleza e sedução, com jantares, licores e olhares prepotentes. À mesa, com louças finas, talheres de prata e etiqueta impecável, comensais degustavam a comida sem ver o tempo lhes consumindo. Os belos e joviais rostos do passado rolaram pelos degraus escada abaixo, agora são fantasmas a assombrar os espaços com possibilidades intangíveis.O tempo não retrocede. A noite é longa e repleta de solidão, a sinfonia musical que inunda os ouvidos da velha senhora são apenas gritos ecoando de um passado distante. Os acordes provenientes do espaço além das paredes é a perfeita cantoria de ratos a roer-lhe o que resta de seu mundo.
Velha senhora, de trajetória repleta de mesas, pratos e amigos da alta sociedade, agora abraça com superlativos a sua própria existência, como um náufrago ao bote salva-vidas. Como um grito por socorro, a sua fala é apenas um monólogo autocrático de reafirmação de um mundo imaginário.Os ratos que cantam no telhado são apenas eco de sua existência decadente, com rugas, louças trincadas e uma trilha de sepulturas.
Quem vai lhe dizer que o mundo além das paredes tem bem mais que ratos cantores?