HOJE É O DIA
HOJE É O DIA
Taí um dia em que nada deu certo. Sei que a frase não é original e espero ser perdoado pela falta de imaginação, mas, tendo em vista tantas turbulências e frustrações de uma só vez, só posso mesmo dizê-la e até repeti-la.
Quebrei o relógio de cabeceira, ao tenta desligá-lo, às seis da manhã. O tempo estava chuvoso, a cama quente e macia. O maldito tocou bem no meu ouvido, como que dizendo:
“Levante-se, preguiçoso. Siga meu exemplo, que fiquei a madrugada toda acordado.”
Não suportei a ironia e varejei-lhe a mão, espatifando-o contra a parede. Resultado: cortei dois dedos (será que ele me mordeu?) e ainda vou ter de comprar um outro despertador, sei lá se mais cínico do que o falecido e que, certamente, vai continuar a me “dizer” coisas semelhantes.
No banheiro, não pude deixar de me lembrar de um velho sucesso da Elza Soares, cantando uma paródia do memorável In the mood (que saudades da orquestra dançante do Glenn Miller...).
Edmundo nunca sabe bem o que faz
Ele é um sujeito distraído demais
Dizem que uma noite quando em casa chegou
Antes de deitar ele fez tal confusão
Que o chinelo no seu travesseiro botou
E se ajeitando foi dormir no chão...
E por aí seguia a paródia. O Edmundo era mesmo um desastrado e chegava a mexer a água da banheira com uma colher e ir para a cozinha fritar o roupão.
Eu, que não pretendia fazer as mesmas tolices do Edmundo, agi com a maior das cautelas: pus pasta de dentes na escova, fiz a barba (sem me cortar), mas quando dei a descarga no vaso - ó horror! - a água subiu, rapidamente, trazendo consigo o que nela boiava. Transbordou tudo e o banheiro ficou uma lástima.
O jeito foi fechar o registro, fazer a limpeza e ainda desentupir o maldito vaso. Com isso, meu tempo encurtou. Corri para a cozinha, sem roupão, para não fritá-lo e me preparei para tomar um café-com-leite gostoso. Enchi meia xícara de café e quando derramei o leite por cima, verifiquei que havia se transformado em vistosa coalhada marrom
Lá se foi o meu café-com-leite, pia abaixo.
Vagarosamente, contei até cinquenta e abri um sorriso, dizendo para mim mesmo:
“Melhor esquecer esse tal de café da manhã. Fica para amanhã. Bom que ainda consigo fazer graça na desgraça”.
O resto da coalhada, joguei direto no lixo. Dava até para comer, mas eu queria vingança!
Ao sair vi que o ponteiro da gasolina estava no vermelho e que desse jeito somente andaria poucos quilômetros. Lá fui eu abastecer e enquanto o frentista foi passar o meu cartão, aproveitei para relaxar olhando o movimento em volta do posto.
- Doutor, seu cartão foi recusado.
Durante a semana, com a proximidade do Natal, andei usando o cartão para a compra de presentes. Resumindo: o limite havia ido para o espaço. Por sorte, ainda tinha algum dinheiro vivo que deu para pagar a despesa, mas fiquei reduzido a zero.
- Quer que veja a frente, doutor? Óleo? Água? Filtros? Lavo os vidros, doutor?
- Fica para outra vez. Estou atrasado.
Um chato, o frentista. E o maldito insistia em me chamar de doutor. Segui para o trabalho com o humor acendendo
luzinhas vermelhas a toda hora.
Na repartição, ninguém falou comigo. Passavam sem responder aos meus cumprimentos. O chefe me chamou uma infinidade de vezes. Assuntos de rotina. Parece que fazia para me irritar. Pediu-me que redigisse uma carta comercial, alegando que a secretária fora entregar papéis importantes à Diretoria. Fiquei quase uma hora tentando arrumar as ideias, que, quando me vinham, acabavam por ser expressas em frases mal construídas.Terminado o expediente, tomei meu carro e voltei para casa mas, ao entrar na garagem, tenso como estava, bati no muro e arranhei um dos para-lamas. Berrei, xinguei a mim mesmo, dei socos na cabeça. Subindo de elevador só conseguia pensar que, a qualquer momento ele iria parar, mas isso não aconteceu. Ao saltar, encontrei o corredor totalmente às escuras e fui tateando até a porta. Procurei nos bolsos e não encontrei as chaves. Era demais. Sentei-me no chão, enterrei a cabeça nas mãos e já ia começar a chorar, quando as luzes se acenderam e um desafinado coro surgiu à minha frente, puxado pelo chefe da repartição.
“Hoje é o dia
Do teu aniversário,
Parabéns, parabéns.
Desejamos que vás ao centenário
Os amigos sinceros que tens...”
O "bando" sabia o quanto eu detestava o “Parabéns pra você” e tinha tirado do baú uma outra canção, também própria para arrasar com a paciência de qualquer aniversariante. Logo atrás do chefe, uma das funcionárias, aliás muito minha amiga, segurava, num cabo de vassoura, as chaves do apartamento na ponta, à guisa de estandarte. Numa de minhas idas pa-
ra atender as “exigências” do chefe, os malandros haviam “furtado” o chaveiro do bolso do meu paletó.
Com tantos dissabores, eu havia esquecido do meu aniversário, mas eles, não.
Que delícia ter amigos. Principalmente nos dias em que nada dá certo.