PAPO FÙNEBRE
PAPO FÚNEBRE
Como poderia ser exceção, eu, mortal como to- do mundo? Como não pensar nela, de vez em quando? À medida que envelheço, cada vez mais me aparece aquela figura, onde não se consegue distinguir, por detrás de um capuz, traços do rosto, porque em seu lugar só de divisa uma única mancha negra. E o que dizer da medonha foice que traz numa das mãos? Pois é. Dona Morte é sempre descrita como algo de que devemos ter medo. Que tal se nos fosse passada a figura de um daqueles querubins gorduchos e corados, todo sorridente na hora do “vamos ver”?
Cheguei a sonhar com a “parca” e reproduzo o papo que tivemos.
Era um dia radioso, com temperatura amena e sol brilhante. Caminhava pelo meu bairro, quando me senti atraído por uma vitrine cheia de bugigangas. Tão distraído estava que nem percebi aquela estranha figura a meu lado, toda enrolada em um manto, sem face e segurando uma enorme foice. Suava muito e, a toda hora enxugava o “rosto” na beira da manga do manto. Por que o espanto? A Mula-sem-cabeça não põe fogo pelas ventas? Deixemos os pormenores de lado e voltemos ao sonho.
Reparei que resmungava e lhe perguntei:
- A senhora precisa de ajuda?
- O senhor é muito gentil - respondeu ela com uma voz d’além túmulo.
- Quer o meu lenço emprestado? Se continuar enxugando o rosto na manga de seu belo manto, vai acabar por estragá-lo.
Ela me olhou, demoradamente, e respondeu:
- Obrigada. O senhor me permite assoar o nariz também? De tanto procurar por aquele cretino, creioque me resfriei. Imagine se vira pneumonia e eu morro?
E deu uma tremenda gargalhada.
- Conte alguma coisa sobre o tal cretino, Dona, Dona...
- “Vem Comigo”. Foi com este nome que o “Lá de Cima” me batizou. Eu sou encarregada de levar para o representante do “Lá de Cima” as pessoas que “batem as botas”, mas já procurei o infeliz por toda parte e não consigo encontrar. Acho que estou precisando fazer exame de vista novamente. Afinal, o último foi em... em...Sei lá. Só sei que estou exausta e acho que vou voltar ao céu e prestar contas do meu fracasso. Quem sabe não me é concedida uma aposentadoria?
- É, Dona “Vem Comigo”. Usando termos como “batem as botas” e “precisando fazer exame de vista”, só falta me dizer que anotou o nome e as características do “cretino” e perdeu o papelzinho.
- Você é adivinho? Pode ler a minha mão para saber se vou viver muito? Mas que indelicadeza da minha parte. Qual é o seu nome?
- Pode me chamar de “Não vou mesmo”. Minha madrinha gostava de nomes exóticos.
- Até que ficou interessante...”Vem Comigo” e “Não vou mesmo”. Já imaginou se eu estivesse à sua procura? O bicho ia pegar. Será que você pode me ajudar, “Não vou mesmo”? Por que eu não encontro o “cretino”?
- A senhora já pensou que o “cretino” pode ter sido mandado para o espaço, escolhido como tripulante de uma nave? Nesse caso, vai perder seu tempo procurando na Terra.- Como assim, “Não vou mesmo”? Que história é essa de “tripulante de uma nave”? O que é isso?
- Xi, Dona “Vem Comigo”. Se a senhora nem sabe o que é uma nave tripulada, aí “o bicho vai pegar” mesmo! Outra possibilidade: o “cretino” pode ter sido cremado, suas cinzas atiradas ao vento, no mar ou numa floresta. Podem até mesmo estar numa urna, bem por cima de uma lareira, veneradas por sua viúva. Aí, minha cara, não tem jeito mesmo. Só se levar um punhado de madeira queimada e apresentar ao “Lá de Cima” como sendo o que restou do cretino.
- Sabe do que mais, “Não vou Mesmo”? Já que tá tão difícil encontrar o “cretino”, não vou partir de mãos abanando. Você vem comigo. E não adianta ficar repetindo o seu nome.
No exato momento em que Dona ”Vem Comigo” erguia a monstruosa foice, acordei, “suando em bicas”, como ela certamente diria.
Mesmo desatualizada e com deficiência visual, morro de medo dela.