O cronista do óbvio
Uma das características mais marcantes das crônicas é a presença do óbvio, mas o gênero vai muito além, com seus incontáveis predicados. Crônicas falam do cotidiano, das rotinas bestas, das esquinas, de ciúmes e de amores, de botecos, de quintais, de fogões a lenha, de comidas regionais, de árvores e de jardins. Aliás, do que não falam as crônicas? O material delas são os prazeres e as tristezas do dia a dia, as pequenas coisas que nos distraem, sem criar grandes expectativas, as paixões escondidas, os gestos espontâneos, além de proporcionar diferentes leituras do mundo. Tudo isso sem preocupação rígida com a realidade, com a exatidão dos fatos ou com a pesquisa científica; cronistas não fazem análise política, brincam com ela. Ainda que tangenciem o terreno da ficção, nelas não cabem embustes e calúnias, a não ser como ironia. Pensando bem, um pouco de poesia e lirismo é essencial.
O óbvio é quase invisível, discreto; é aí que entra a crônica, para falar dele, para cutucá-lo, para desvendar seus segredos. O óbvio nem sempre se nota, mas é transparente para quem tenha olhos de ver. Quando querem escondê-lo é quando precisa ser escancarado, exposto, às vezes de modo ostensivo, às vezes de forma sutil. Ao ser provocado, ele se sujeita a ser pensado e suscita inúmeras interpretações. Pois é, existem situações tão óbvias que ninguém enxerga! E é quando ele se mostra nítido e evidente que muita gente se espanta. Se os incrédulos negam as evidências, os oportunistas e os ignorantes não gostam do óbvio. Uns porque o escondem nas sombras, outros porque não o compreendem.
Será que precisamos das crônicas para nos revelar o óbvio? Para nos mostrar o que não conseguimos ver? Para nos dizer que árvores, flores e jardins são essenciais à vida de todas as pessoas? Para nos revelar a importância da leitura? Para denunciar desmandos? Para nos fazer sentir o aroma delicioso de café passado na hora acompanhado de pão de queijo? Para nos fazer rir das nossas bobeiras? Que seja!
Um dos problemas técnicos do óbvio é que cada um o vê como quer, apesar de inconfundível. Ou será que ele é um pra mim e outro pra você? Então ele não é tão explícito assim. Em tempos difíceis, faz-se necessário conversar sobre ele, mostrar as obviedades para evitar que o indigesto predomine e, pior, que o óbvio seja transformado em obscuro. Triste situação em que é preciso escancarar o óbvio. Seria melhor discutir o futuro, dar vazão às expressões artísticas, às loucuras criativas para não ficarmos prisioneiros da razão obtusa.
Por que falar do óbvio? Porque muitos não o enxergam. Porque uns e outros, neste momento em que estamos vivendo, preferem a dissimulação e o ódio, por incompetência e patifaria. O que fazer? Refutar as certezas autoritárias com dúvidas libertadoras. É óbvio!