Poeticídio
A gente se mata todos os dias. De sustos, de vício, amor, desamor, doses conta-gotas de suicídios não violentos. Poetas são mortos silenciosamente, sem deixar sinais. Crime perfeito, sem glosa e sem suspeito. Kaio Bruno Dias poetizou que a gente morre todo dia por deixar de ser quem gostaríamos, por não ter pernas pra ir àquele seu destino sonhado, por silenciar nossas verdades e quando os vícios se tornam nossos melhores momentos. Outro poeta anônimo, Pedro Salomão, suplica: “se você me entende, por favor, me explica!”.
Percebo que, se matarem todos os poetas, a população mundial sofrerá um abalo considerável. Todo bichinho de orelha se declara poeta. Cito outro poeta de blog, Sérgio Vaz: “Se todo mundo que fala que é, fosse, a gente não estaria nesta fossa”. Poeta é um escritor que compõe poesia. Ou um cronista, romancista, cujos escritos se encharcam de poesia. Redigir poesia é um troço tão forte em alguns indivíduos que é assim: escrever ou morrer. Muitos escrevem e morrem. A escritora americana Sylvia Plath se suicidou em 1963, aos 30 anos. Outra americana, Virginia Woolf, a portuguesa Florbela Espanca e a brasileira Ana Cristina Cesar se mataram. O ofício de escrever tem a função de dar uma arranjada no discernimento da pessoa que escreve, porém, corre-se o risco de desatinar.
O poeta moderno é poetisa, negra, 38 anos, mulher da Umbanda, periférica, pansexual e chegada ao poliamor. Por ser gorda, negra, mulher e lésbica, e falar em coisas eróticas nos seus poemas afrocentrados, a poeta sofre carradas de discriminação. A implicância e o preconceito levam a poeta, cujo nome é Joaninha Dias, a se esconder do rótulo de poetisa, que ela odeia essa forma “correta” do feminino da palavra poeta. As histórias ancestrais que rolam na sua poesia carregam o lema ressaltado por Conceição Evaristo: “‘minha escrita é contaminada pela condição de mulher negra”.
Há, entretanto, o poeta chato. Ele veste uma camisa com a legenda “Poeta fulano de tal” e sai declamando seus versos, diria até que impondo sua produção. Conheço uma figura extravagante nessa linha. Vai ao passeio toda manhã com seus poemas debaixo do braço. Em rigorosa abstinência de senso do ridículo, detém a primeira pessoa que encontra e lê os tais poemas de patas espedaçadas. Constrangedor ver as pessoas evitando dar de cara com o vate.
Escrevo versos desde os quinze anos, publiquei alguns livros, mas não me considero poeta. Fujo poeticamente do rótulo. Pelas mesmas razões do professor Arturo Gouveia: “Não posso aceitar que a sociedade me veja como escritor. Sim, já publiquei poemas, uns sonetos retrógrados, publiquei livros, mas tudo por mero prazer e pra não deixar que minha cabeça oca seja tentada por maus espíritos. Dá pra entender? Me chamar de escritor faz parte dos exageros de interpretação que a sociedade, às vezes, para o bem ou para o mal, nos impõe”. Alguém acusou o poeta Arturo de escrever para uma elite. Ele se defende. Garante que não escreve pra ninguém, as pessoas é que procuram seus textos para ler. “Não tenho culpa do mal gosto dessa gente”, diz Arturo, para quem o maior sonho é cair na obscuridade e jamais ser reconhecido como escrevinhador do que quer que seja.
Protegido pela madrugada, o poeta cai na clandestinidade dos becos e vielas, mete-se entre cangaceiros urbanos e se transforma em poeta marginal de bar suspeito. Como todo delinquente, o poeta fora da lei tem sua cabeça a prêmio. Na Colômbia, matam-se poetas “a domicílio”, conforme li em um blog. Pobres confrades colombianos! Seria o poeticídio a solução final para esse desajustamento literário? É crime mal traçar e pior parir excrementícios bolos de tolos poetaços? Por via das dúvidas, deixo registrado que não sou nem serei inventor dessa coisa “complexa, feita de tristeza, nostalgia e sentimentos confusos a que o vulgo denomina poesia”, no conceito do não poeta Paulo Mendes Campos.