A crítica abalizada das visagens literárias
Li, imediatamente antes de iniciar esta coluna, “Ao Corredor da Pena”, crônica de Raymundo Netto, cronista cearense, que foi escrita em 30 de abril de 2007 para o jornal O Povo, de Fortaleza, e depois, em 2017, publicada no livro Crônicas Absurdas de Segunda, pela Edições Demócrito Rocha, com prefácio de Ana Miranda e de Sânzio de Azevedo, ou seja, dois merecidos prefácios. Crônicas Absurdas de Segunda, que de absurdas nada têm, é um livro sui generis, que absolutamente nada fica a dever às maiores obras do gênero de todos os tempos no Brasil.
A obra é sui generis, porque nela Raymundo Netto, jornalista dos bons e mais cultos do país, inova na forma de cronicar, brincando sobre assuntos diversos sem fugir da seriedade, apresentando a cidade e, ao mesmo tempo – o que, a meu ver, é de suma importância na arte de cronicar – criticando o que julga dever ser criticado. E tudo isso em conversas imaginárias que entabula com autores vivos e mortos, cronistas, poetas, romancistas e outros expoentes da nossa literatura do passado e do presente, como, por exemplo, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, José de Alencar, Rachel de Queiroz e Ana Miranda.
Para que o leitor tenha uma ideia, um parágrafo do prefácio da romancista Ana Miranda:
A série de crônicas que Netto aqui apresenta tem uma linha mestra: é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam, surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados.
E Ana Miranda continua no parágrafo seguinte, do qual retiro este pequeno trecho que mostra o olhar crítico do cronista a falar pela boca insuspeita de seus personagens, nos insondáveis bate-papos levados a efeito no ônibus, na praça e em tantos outros lugares da Fortaleza de nossos dias:
Essas visagens não aparecem para discutir literatura nem falar de livros, mas para olhar a cidade e seus costumes, seus personagens pitorescos, suas comidas, músicas, seus maracatus, becos, bares, bibliotecas, as casas demolidas, as preservadas, e mais detalhes.
“Ao Corredor da Pena”, a crônica a que me refiro lá no início, ao lado de toda a beleza textual que ostenta e vale a pena ser conferida, é mais uma das críticas contundentes do cronista aos males de nossos dias, tão agravados pela improbidade dos governantes de todos os lugares, com raríssimas e honrosas exceções. Aí, Raymundo Netto fala pela boca de José de Alencar, em rico diálogo levado a efeito dentro de um dos muitos ônibus lotados até derramar passageiros pela janela, criticando a quase total impossibilidade de se cronicar: “Afinal, como se pode hoje brincar sobre um assunto, escrever uma página em estilo mimoso, falar de flores e música, se o eco da cidade nos responde de longe: pão, epidemia, socorros públicos e enfermarias?”
Antes que me esqueça de registrar, uma informação literária interessante é que “Ao Correr da Pena” – não confundir com “Ao Corredor da Pena”, título da crônica de Raymundo Netto –, era o nome da coluna dominical de José de Alencar, no jornal Correio Mercantil, quando ele, aos 25 anos de idade, em 1854, começou a escrever crônicas e dessa forma contribuir com a sociedade.
Concluo. Como disse, em 16 de dezembro de 1978, o Prof. Dr. José M. Maurício, não em uma crônica, mas a certa altura de seu discurso de paraninfo de uma turma do curso de oratória Comunicações Verbais, de Oswaldo Melantonio, em São Paulo: “O interesse social, que não se opõe ao da própria pessoa, antes o completa, está a exigir que todos deem o máximo de si mesmos, para entender e fazer-se entender – condição essencial à pacificação dos espíritos.”