Altas horas: crônica paulistana.
À saída da Estação da Luz, um sujeito, abordando-me tão logo alcancei a calçada, pergunta-me se eu poderia ajudá-lo. Acredito que haja nesta vida momentos nos quais a polidez, os bons costumes, a etiqueta e a própria civilidade perdem o sentido de ser e tudo quanto nos resta é o abandono ao caos do fio que, tensionado para além do limite de seu coeficiente de elasticidade, torna-se fisicamente incapaz de resistir à tenção e rompe-se. No trem eu vira, em uma rede social qualquer, alguém escrever -- num estilo insuportavelmente pedante -- uma reprimenda aos palavrões. Isso me deixou perturbado. Saí do comboio enraivecido como o diabo.
Como, num país como o nosso -- numa época como a nossa -- alguém preocupar-se-ia com o palavreado que faz referência a esta ou àquela região anatômica do corpo humano, ou ao suposto ofício da mãe de sei lá quem? Eu não sou nenhum apologista dos palavrões, a bem da verdade raramente faço uso deles; mas sempre os tive como uma válvula de escape indispensável para o equilíbrio das pressões do cotidiano -- mormente nesses caldeirões dignos do Tártaro aos quais chamamos de centros urbanos.
Nunca fora tão fácil meter-se na vida alheia. Sentados no banco do trem ou na satisfatória solidão dos nossos banheiros somos alvos permanentes -- e cada vez mais fáceis -- do juízo alheio. Percebi, aliás estou percebendo, que isso destrói qualquer manifestação de amor ao próximo. Sim, porque o mundo do falatório é um mundo oco, vazio, desprovido de substância; um mundo no qual o único interesse que o outro desperta advém daquela especulação rasteira, daquele gosto maligno de saber de sua vida sem genuína preocupação.
O amor ao próximo pressupõe uma preocupação verdadeira com a sua condição existencial real. Daí a impossibilidade de sua manifestação entre a maledicência. O amor torna-se rarefeito na exata medida em que tudo o que nos interessa no outro é aquilo que, em sua natureza, é acidental. Coloquei a mão no bolso e apalpei a carteira no exato momento em que a lembrança de que não mais carrego dinheiro em espécie acudiu-me à memória. Droga! Nenhuma moeda. Talvez ele aceite Pix. Ouvi dizer que hoje em dia os mendigos aceitam as singelas expressões de caridade via Pix.
A bem da verdade, o homem não parecia um mendigo; não queria dinheiro. Para meu deleite, a tarde estava magnífica; as cores do entardecer, como que animando o antigo prédio da Luz e a torre relativamente próxima da Sorocabana, pareciam purificar aquele ambiente tão decadente. As sombras já bastante oblíquas projetadas pelo edifício, no entanto, sepultavam os mendigos abrigados nas barracas cuja sustentação era a própria amurada da estação. Só não percebi a beleza da tarde antes, assim que desci à calçada, porque aquele sujeito roubara-me a atenção.
Mas agora eu via. Bastava elevar ligeiramente o olhar para ver. As grandes cidades do Ocidente são o ambiente nos quais o indivíduo, ainda que nunca seja capaz de verbalizar, vive infinitas experiências estéticas. Acima daquela fealdade, muito acima, jazia o céu; para além da velha torre do relógio a Eternidade falava. Pensei em xingar, em tomar uma atitude que, do ponto de vista do pecado original, seria radical. Mas era tarde. A beleza me conquistara. Eu me rendi e ganhei.
Olhei para o homem que interpelava-me na calçada da Luz e perguntei como eu poderia ajudá-lo. Ele fez sinal para que eu o seguisse até o outro lado da rua, de fronte para o Parque da Luz. Quando aceitei segui-lo decidi que não levaria comigo nenhuma desconfiança. De onde estávamos era possível contemplar todo o esplendor da estação centenária. -- "Muito bem, meu amigo, o que você quer? Se for dinheiro, eu não tenho aqui, mas posso sacar uma nota de vinte". -- "Eu não quero dinheiro, amigo", -- ele respondeu.
-- "Sabe o que é? É que eu não tenho o hábito de usar relógio e o meu celular está sem carga. Você poderia me dizer que horas são?". Nesse momento eu desatei a imaginar os lugares mais baixos onde eu poderia sugerir -- literalmente aos gritos -- que sua mãe trabalhasse. -- "Como é?" --, respondi com uma calma que surpreendeu a mim mesmo. -- "Você me atrasa na porta da estação, me faz atravessar a rua só para me perguntar as horas?". -- "Eu sei que é estranho" --, ele respondeu, -- "mas é que eu não sei ver as horas no relógio analógico".
-- "E daí? Meu amigo, olha aqui, eu não uso relógio, consulto as horas no celular. Olha, se quiser saber que horas são, eu falo agora". O homem fez uma expressão de tristeza, de abatimento; parecia estar arrependido. -- "Moço" -- disse ele -- "desculpe pela confusão, desculpe por ter tomado o seu tempo. Eu só queria saber que horas eram ali, ó, no relógio da estação".