Invasores à espreita

Moro num apartamento bem pequeno. Por vezes até me sinto sufocada, pouco espaço para andar, para guardar as coisas. Não que eu tenha muita coisa para guardar. Não tenho uma mobília tão grande, mas minha filha tem uma certa quantidade de brinquedos e a falta de um cantinho para que ela possa espalhar sua “bagunça”, às vezes faz a sala ficar quase que intransitável. Faz parte, né.

Mas esse cantinho pequeno, com pouco conforto, tem me proporcionado alguns bons e intensos momentos de encantamento, de deslumbre, que me fazem superar a falta de espaço. Buscarei ainda, num futuro próximo, um lugar maior. Aqui foi meio que um improviso. Com a pandemia, sem muitas alternativas, fomos ficando. O fato é que tenho o prazer de acompanhar, quase que diariamente, pela janela da sala, o pôr do sol. Um momento de magia e beleza ímpar, capaz de trazer paz e quietude, mesmo quando o dia está terminando tenso, com as baterias quase descarregadas. Em alguns dias, após o evento do sol se despedindo, tenho a alegria de contemplar a lua nova, prateada, linda, singela. Poesia pura escrita pelo autor sagrado.

Na minha minúscula cozinha, respiro o ar do amanhecer que me vem de outra janela, esta virada para o norte. E através dela também contemplo o balé dos passarinhos. Moro num bairro com cara de interior, muito bem servido de pássaros, em especial as rolinhas, que me fazem recordar minha infância. Também me trazem lembranças da minha mãe, que há poucos meses se foi para junto do Pai. Ela sempre nos contava que na infância criava rolinhas em casa. Era fiel defensora dessas avezinhas e reconhecia o canto delas, sabendo inclusive diferenciar de qual espécie se tratava. As que habitam essa região onde moro são as de cor marrom, no interior chamávamos “rolinhas caldo-de-feijão”. Elas são lindas.

Ultimamente, além da brisa matinal na hora de preparar o café, tenho a companhia de um casal de rolinhas que anda preparando o ninho num poste, em meio ao emaranhado de fios, no encaixe de um “braço” de sustentação da luminária. Elas tentaram construir esse ninho na calha de uma casa, mas parece que as espantaram de lá. Encontraram no poste o lugar apropriado para depositar os ovos que trarão filhotes muito em breve. Isso, é claro, se nenhum predador, em especial os humanos, fizerem algum mal a esse lindo casalzinho.

Ocorre que, assim como entre nós humanos há aqueles que buscam se aproveitar do trabalho dos outros (no ambiente familiar, no trabalho, nos diferentes espaços da vida social), deparei-me hoje com um pardal querendo se apropriar do ninho das rolinhas. Ele voava insistentemente ao redor e tentava, com o bico, retirar os galhinhos que formavam o ninho. Percebi que os donos da casa não estavam. Fiquei preocupada, mas nada poderia fazer, apenas esperar e torcer para que os donos do ninho chegassem. E eles chegaram. E colocaram o invasor pra correr. Agora quando chego na cozinha vou logo olhar como está a situação. Sempre vejo um no ninho e o outro por perto, pastoreando.

Fiquei aqui refletindo sobre as mudanças e os processos evolutivos no mundo. Hoje pássaros fazem ninhos nos postes de iluminação. Hoje entre nós, humanos, há uma disputa por querer tomar o espaço do outro, da outra, mas de formas bem diferentes. Na política, por exemplo, se faz até “colheita de provas”, para derrubar a escalada de alguém a um determinado cargo. Invadem site da instituição de pesquisas que arquiva projetos e currículos de inúmeros cientistas e pesquisadores e, como se não bastasse lidar com um vírus invasor, que rouba vidas, que nos tira as pessoas que amamos, ainda invadem o site onde se armazenam as informações de vacinas, os dados de registros dos casos da doença e assim por diante. Se na antiguidade as guerras eram pelos espaços físicos, terras, para ampliar o poderio, hoje as tentativas de apropriação indevida acontecem também na nuvem, no espaço cibernético. Os tesouros estão no ciberespaço. As disputas agora são pelas informações, pelos algoritmos.

Quisera eu que minha preocupação em termos de invasão fosse apenas com aqueles passarinhos que alegram as minhas manhãs. Mas assim como aquele ninho, suspenso no ar, em meio ao emaranhado de fios, estão as nossas informações, as nossas contas. São contas de banco, de e-mail, de perfil de redes sociais, tudo correndo risco de um invasor entrar e nos roubar o que lá está guardado. É passarinhos, nós também temos vivido nas alturas, “na nuvem”, mas os invasores estão por aqui mesmo, no chão.

Ah, e sobre morar num apartamento pequeno, bem, estou batalhando por um espaço maior, especialmente para poder organizar meus livros (grande parte está em caixas) e meu lugarzinho para escrever. Enquanto isso, vou me inspirando por aqui mesmo, com minhas janelas. Uma janela aberta é sempre um convite para ampliar a visão. E como dizia Fernando Pessoa, “sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”.

 

Zenilda Ribeiro
Enviado por Zenilda Ribeiro em 15/12/2021
Código do texto: T7408067
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