Capítulo I:

 

Um ralo e solitário café fora servido. Sem nada ter para acompanhá-lo, só fez recrudescer a fome que, de há muito, grassava no estômago do pequeno e da jovem senhora Maria das Dores. Sim! Era esse o seu nome que – ao que parece – ‘fora escolhido a dedo’ para ela, pois, tantos eram os percalços, tantos eram os sofrimentos, tantas estavam sendo as dores pelas quais passava que, não sendo, pois, cabível outro nome que não o de Maria das Dores – Maria das tantas dores sofridas!

 

-Vou sair mamãe! – dissera Carlinhos! Vou ver se consigo alguma coisa para nós! Dando-lhe um beijo na dolorida face, Carlinhos pegou o seu instrumento de trabalho. Era um caixote que servia como depósito dos seus materiais para engraxate, usado por ele para lustrar os sapatos dos passantes. De posse da sua oficina ambulante, desceu o morro.

 

-Que o Bom Deus te abençoe e te acompanhe meu filho, disse a jovem senhora, deixando transparecer na sofrida face o orgulho pelo filho que tem. E dizia para si mesma: - Tão criança, contudo, muito responsável. É a pura imagem e semelhança do falecido pai – concluiu.

-Amém, mamãe! Fica com Deus – dissera!

 

Chegando perto do barracão onde o amigo Luizinho morava, assoviou em código chamando o companheiro de infortúnios. De dentro da moradia vem um: - Já estou indo! – era a voz do Luizinho respondendo ao amigo!

Algum tempo depois chega o trêfego colega. Conversando, desceram o morro levando às costas o peso das ferramentas de trabalho e o das decepções impostas pela dureza da vida. O papo girava em torno do futebol, futilidades e as preocupações de sempre!

-Cacá – apelido do Carlinhos –, o que houve com você? A sua cara está esquisita, bicho! Qual é a bronca?

-Sabe, Lu, a mamãe está muito doente. De ontem para hoje ela tossiu a noite inteira. Ela está muito mal. O pior é que todos os remédios se acabaram e nós não temos dinheiro nem para a comida. Lá em casa...

- Vai uma graxa aí, moço? – indagou a um passante!

- Só se for bem rapidinho o seu trabalho!

- É pra já..., é pra já! Repete o eufórico Carlinhos por ter conseguido o seu primeiro trabalho do dia que ora se iniciava. Terminado o serviço – e, talvez, por apiedar-se da frágil figura do menino – o bondoso senhor pagou o equivalente ao triplo do preço comumente cobrado. Não era à toa a atitude do cidadão – ele já estava tomado – incorporado por melhor dizer – pelo “Espírito do Natal” a tocar-lhe o nobre coração. Afinal, era aquela a manhã do dia 24 de dezembro. Era, portanto, a Véspera de Natal.

-Deus lhe pague moço! Agradeceu-lhe Carlinhos, saindo em busca do amigo Luizinho. Encontra-o e saem – desta feita – à procura de um boteco onde pedem ávidos, dois cafés pingados e pães sem o luxo da manteiga. Enquanto comiam, Luizinho notou que grossas lágrimas brotaram nos tristes ocelos do amigo.

- O que foi Magrelo? (Outro hipocorístico do amigo!) – indaga Luizinho!

- É a mamãe, entende? Até agora ela, ainda, não comeu nada. Ela somente come, quando eu consigo ganhar algumas coisas nas ruas e as levo para casa à noite. Sabe (Concluiu Carlinhos, usando os dorsos das sujas mãos para secar as lágrimas do rosto.), eu queria tanto dar um presentinho para mamãe neste dia de Natal, mas (Vai uma graxa, aí, moço? – pergunta a um passante!) não tenho nem um tostão.

 - Espera aí, meu irmão! Liga não, cara! Natal é coisa só dos bacanas. Só os ricos é que dão e recebem presentes no Natal – sacou? Ato contínuo, usando as mãos, formatou-as. Com a esquerda fechou os dedos em forma de um tubo. A direita veio, a seguir, espalmada. Então, e com várias e fortes batidas dessa sobre a esquerda, produziu os onomatopaicos “ploc, ploc, ploc,” enquanto dizia, a cada batida: - Pra nós, cara, só ferro – sacou? Só ferro, mano! – dissera!

 

A sua amarga revolta era a tônica das suas palavras nas quais demostrava a verdadeira face do Natal das famílias carentes.

Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 13/12/2021
Reeditado em 13/12/2021
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