O Apocalipse do Ósculo, ou uma forma de adiarmos o fim do mundo
Você pode não acreditar. Sim, se já teve tempo de me conhecer, guarda provavelmente um ressábio por não ser muito diferençável o que é ficção do que é realidade nas barafundas que escrevo.
Mas faça um esforço, ponha algumas gramas de fé na balança das ideias.
Num dos confins do sudeste asiático, mais especificamente na ilha de Nova Guiné, detalhadamente na antiga província indonésia de Irian Jaya (Deus, adoro esse nome), hoje nomeada de Papua Ocidental, vive a pequena tribo dos kailois.
Bem, temos centenas e centenas de povos indígenas habitando aqueles arquearredores. A tal ilha de Nova Guiné, por sinal, abriga mesmo a maior profusão de línguas distintas por metro quadrado do mundo.
Tais emaranhados de mar, chão e matas equatoriais, é de se imaginar, foram percorridos e transpassados já à quase exaustão por antropólogos, etnólogos, linguistas e querelados quetais. Mas só recentemente descobriu-se algo que surpreenderia até mesmo grandes antropólogos de campo ou bancada, de um Frans Boas ou Lévi-Strauss até um Bronisław Malinowski, ou mesmo nosso padrinho e patrono, Darcy Ribeiro. Trata-se de um pormenor, uma inusitância da cosmovisão escatológica daquele povo.
O povo kailois diz que o mundo foi gerado a partir de um beijo – sim, um inumerável beijo que cobriu toda a superfície infinita das águas primordiais.
E a partir deste beijo fundacional, deste ósculo sagrado desferido pelo Deus criador, o tecido da realidade, os pilares que sustentam todas as coisas, têm sido mantidos à base de beijos. Isso mesmo: Cada beijo que um ser humano aplica – em boca, rosto ou que seja – ajuda a manter o fluxo de vida pulsando, ajuda a perpetuar aquele beijo primevo que fundou todas as coisas.
E essa crença leva a uma outra, curiosa: A escatologia (ciência ou estudo das últimas coisas) dos autóctones kailois diz que o mundo terminará por pura e simples, rude e fria falta de beijos. A secura das almas, a desfaçatez dos relacionamentos, a fragilidade dos afetos, o egoísmo crescente de nossa era – previsto sinistramente pelos profetas kailois – hão de levar a cabo ou ao fim do cabo a nossa espécie. Sim, pois o beijo vazio de sentimento, o de mecânica licenciosidade, é tido em tal fabulário mítico na conta de falso beijo, apressador do apocalipse.
Os relatos orais não dão conta de uma data específica para o fim do mundo, mas assinalam sinais e desígnios que podem ser percebidos pela atenção dos sábios. E eles aí estão, segundo alguns abalizados intérpretes.
Mas não há determinismo aqui, não há a rigidez implacável das operações divinas apregoadas por um estoicismo, um calvinismo, um islamismo e outros ismos férreos e monergísticos: Aqui há sinergia, colaboração com Deus, esperança e livre-arbítrio, pois o fim do mundo – desconjuro!, mas ele vem – pode ser ADIADO através de... beijos.
Por isso o conclamo, amigo leitor: Independente de seus conhecimentos antropológicos, de sua fé filosófica ou religiosa, até mesmo do estado de suas forças bucais, BEIJE. Sim, com ordem e decência – e com sentimento, com sentimento! – beije, beije sua pessoa amada, sua família, amigos e chegados; beije a desconsolada e o desamparado na praça, beije, beije, beije! Adiemos o fim do mundo!
Caso a anelante crença kailois seja inexata (recuso o termo falsa), por inocência das mistificações aborígenes ou mesmo pelos excessos de imaginosidade deste escrevinhador gonçalense que vive de criar palavras novas e ressuscitar antigas, todos terão saído ganhando. Afinal, meu leitor, minha leitora, beijo nunca matou ninguém, é capital sensório-socialitário (permita-me teorizar), e até ajuda a emagrecer.
A salvação final do mundo coube a Outro, o mesmo que desferiu o beijo primordial e fechará um dia o círculo de tudo, cuja chave é uma cruz. Mas isso é um outro assunto. Quanto ao que nos cabe, beijemos e posterguemos, democrática e comunitariamente, o fim do mundo.