PARA VIVER... FAÇA O "LOGIN"!

Ele me chegava ali como sempre chegara pelos anos: educado, elegante e gentil.

Homem culto, intelectual, escritor, papo fluente.

Pessoa que batalhou pelas causas que já lhe parecem perdidas e quase a completar oito décadas de vida.

Ali só queria saber como estava.

Aliás, sempre esteve bem, sendo um desses raros binômios "corpo e alma" que parecem ser imunes aos conturbados entornos do tempo.

-Mas o senhor está ótimo como sempre, impressionante, parabéns!

-Ainda está bem o meu coração?

-Parece até o dum recém-nascido...verdade, funciona direitinho.

Sim, aprendi que o coração é muito mais do que uma fiel bomba muscular que verte seiva, é ele o simbolismo das emoções frente ao todo da vida.

E todos, independentemente das acomodações na Terra, querem saber como estão suas máquinas teimosas, que só sabem batucar vários ritmos, de acordo com os bastidores, pelos destinos dos tempos...

-Ando cansado.

-Cansado? Como assim? Por acaso lhe falta o fôlego às atividades diárias?

-Sim , falta o fôlego ao novo mundo. Cansado dessa revolução sem sentido.

-Revolução?

-Sim. Às vezes sinto que estou como se numa transição da História. Algo como na da Antiguidade para a Idade Média, por exemplo. Ou algo similar. Fico me procurando...por aí...

-Sei, sei como é...

-Ontem fui até o centro, de Metro.

-Mesmo? Corajoso! Foi sozinho?

-Fui, mas percebi que há algumas coisas diferentes acontecendo comigo.

-Sim?

-As estações estão diferentes. As direções mudaram. Pela primeira vez na vida perguntei: "Ei amigo, por favor, qual é o trem sentido Paulista?".

Tudo está diferente. As pessoas, as artes plásticas e visuais, as paredes, as linguagens corporais, a comunicação, até os olhares...às vezes me sinto inseguro.

-E tem escrito muito sobre essas mudanças, sobre esses sentimentos?

-As mudanças brigam dentro de mim mas já não me soltam nas letras... parece me faltar palavras.

Mas acabo de receber a encomenda duma biografia, coisa mais prática, porque as letras já foram escritas , basta que eu apenas as revele...

E essa era digital...essa coisa de computador, celular, tudo me cansa e me irrita muito.

-Cansado da era digital?

-Hoje, por exemplo, tive vontade de tacar o celular na parede.

Esqueci a senha dum "aplicativo", eu a refiz várias vezes, mas me negaram o acesso". Errei só uma letrinha...e desisti.

Não aguento essa coisa de senha pra tudo! Letra maiúscula, letra minúscula, caixa alta, caixa baixa, senha forte, antivírus, afora a proteção para hackers, golpes, "fakes".

-Tudo duma complexidade...de fato.

-Sim, tudo amarrado! E eu nunca precisei disso para viver. E me diga se souber: por que sou obrigado a precisar disso agora? Desse tal do " faça login" pra tudo!?

Como sempre, mais uma vez ele estava ali praticando o que sempre fizera: focar o pensamento crítico sobre o todo.

E me fez aqui, além de repensar sobre ele, olhar com acuidade sobre essa dinâmica maluca da contemporaneidade.

E no final do dia, eu que estava ali para analisar e explicar, acabara de angariar um grande aprendizado antropológico, algo bem revolucionário:

Sim, hoje em dia é preciso uma senha forte para se "viver"...

...e por vezes, é uma benção essencial quando esquecemos o "login".

Nota da autora: baseado em fato verídico.