CADEIRAS NAS CALÇADAS
Quando a boca da noite engolia o dia e as luzes amarelas dos postes eram acesas para iluminar parcamente as casas, as ruas se enfeitavam de cadeiras, famílias e, muitas vezes, fofocas. O burburinho era geral. Não havia televisão em nossa cidade naquele tempo distante, nem sonhávamos com tal luxo, existia somente o rádio e unicamente em poucos lares, que demorava a sintonizar as duas emissoras depois de ligados. Tínhamos que esperar a válvula esquentar, quando então a emissão radiofônica começava. Mas a programação noturna não agradava a ninguém, principalmente porque às dezenove horas, ao som de "O Guarani", do compositor brasileiro Carlos Gomes, começava o programa A Voz do Brasil, praticamente nunca assistido pela população. Assim, todos se aglomeravam nas calçadas para conversar sobre tudo e todos e cuidar das crianças, que, alvoroçadas e felizes, íam brincar nas ruas de Barros. Como era divertido jogar bola (quase não havia carros, eram raros, especialmente à noite) e inventar qualquer brincadeira para nos distrair - havia tantas! As ruas pessimamente iluminadas pareciam em festa noite após noite sob a algazarra da meninada na rua e as conversas dos adultos nas calçadas, embora no máximo às vinte horas e trinta minutos quase todos se recolhiam para o repouso. Mamãe costumava dizer sobre esse momento: "vamos para o leito", e eu não sabia o que ela queria dizer com essa frase, na minha cabecinha infantil bastante engraçada e estranha. Bater papo nas calçadas no comecinho da noite era o único divertimento das pessoas maduras e o instante mais esperado para a criançada, já que podíamos nos reunir com os amigos para rir, brincar e passar o tempo. Recordo que apenas nossa casa não tinha energia elétrica em meio às outras, usávamos lamparinas e dormíamos com duas delas acesas - eu e meus irmãos tínhamos verdadeiro pânico do escuro, ficando apavorados quando o querosene das lamoarinas acabava e acordávamos na madrugada completamente escura, pois pensávamos estar cegos. Acordávamos aos gritos, como se a repentina escuridão tivesse o dom de nos despertar. Somente quando papai ou mamãe acendia novamente a lamparina nós nos aquietávamos e éramos envolvidos por Morfeu. Ao acordar pela manhã, todos os dias, nossas narinas invariavelmente estavam pretas por causa da fumaça escura que inspirávamos enquanto dormíamos. Tantas histórias e vivências de outrora dariam um ou mais livros. Há muito para recordar daquela época para hoje, são mais de sessenta anos decorridos, quantas mudanças e acontecimentos que presenciei e dos quais fiz parte se acumularam em minhas memórias, arquivaram-se ao longo dos anos em minhas recordações. Eu tinha consciência de que para transformar meu destino necessitaria abraçar o conhecimento e o saber de forma inequívoca. Não é possivel chegar ao cume da montanha sem suar e cansar, os atalhos da existência humana passavam pela queima das pestanas e o uso sem moderação dos neurônios. Então estudei com afinco, transformei minha vida pelo aprendizado, lendo os grandes mestres da literatura, inclusive os clássicos imorredouros do pensamento, da filosofia, da história universal, do conhecimento e da sabedoria, absorvendo cada linha de seus raciocínios e de suas ideias. Presenciei a TV preto e branco chegar (foi uma festa geral), conquistei a primeira namorada (que alegria indizível senti. A primeira namorada é a fase mais linda do adolescente), continuei estudando acima da média geral, vi a Revolução de 31 de março de 64 eclodir e terminar, passei no concurso do Banco do Brasil e nunca mais as lamparinas fizeram parte de nossas vidas. Uma bênção de Deus entre inumeráveis outras por mim recebidas. Nos anos de meu viver, percebi que cada ser humano é um compêndio histórico, um universo de pequenas histórias acumuladas com o passar das décadas. Qualquer dia escreverei sobre a Revolução de 1964, iniciada aos meus 13 anos e terminada quando completei 34 anos. Eu vivi sob o regime militar e, para mim, foi uma era de patriotismo e cidadania. Os excessos ocorreram no regime e nos que os combatiam por ideologismo, mas é de se frizar que era uma guerra e as mortes, tanto dos assim considerados terroristas quanto das forças governamentais, foram inevitáveis. Infelizmente. Sou testemunha vivo do período e sei como os fatos se deram de verdade porque eu estava lá em seu cotidiano. Eu não ouvi falar do regime militar, participei da rotina diária desse acontecimento histórico.