Ontem no trem. Ana invisível.
Ontem no trem.
Embarco no trem.
Tanto tempo longe que já não sabia utilizar o cartão de passagens ... Tinha vários na bolsa.
A pandemia nos pegou de surpresa!
Um belo dia, numa terça feira, sai do trabalho, despedi dos colegas e deixei uma laranja no meu armário com a certeza que iria voltar no dia seguinte. Voltei depois de quase dois anos ...
Pois bem, ainda refletindo sobre isso peço informação na bilheteria da estação. Nesse momento, chega uma moça enrolada em um lençol, com uma cicatriz enorme e recente na testa, ainda com os pontos da sutura visíveis.
Levei um susto! Era uma moça relativamente jovem, baixinha, gordinha, cabelo curto, claro e sarará . Muita sujeira recobria sua pele e tinha os pés descalços...
Aquilo me chocou, apesar de ser corriqueiro pelas ruas das grandes cidades.
Assustador um ser humano chegar naquele estado... Parecia não existir , apenas resistir.
Ela me pediu que comprasse sua passagem...Eu a olhei e perguntei o que era aquela ferida . Ela respondeu desviando o olhar:" Me machuquei."
Em seguida comprei a passagem, andei até a catraca e passei o cartão para ela.
Ela se foi. Tão fantasma quanto o lençol que estava em volta do seu corpo...
Não deu tempo de perguntar seu nome, sua história...
Uma personagem apocalíptica, parecendo nada vê , nada sentir, nada expressar...
Ela foi se afastando e eu comecei a pensar naquela figura: Será que se chamava Ana e morava no subúrbio? Jessica e foi um bebê reconchuchudinho ? Será que foi planejada? Será que se chamava Luciana e sonhou em encontrar o grande amor de sua vida? Será que era Luiza e já tinha sido mãe? Maria e teve uma mãe que a amou? Paula e já teve os cabelos compridos e sonhava em ser jogadora de futebol? Nina e queria ser professora?
Não sei ! Não deu tempo de saber...Meu trem estava chegando na estação e eu corri para embarcar...
Entrei e fui me distanciando daquela mulher, cujo o estado se confundia com o cinza da estação... Parecia um borrão...
Apesar de existir e não ser notada. Não podemos esquecer que essas "Anas" são gente! Tamanha invisibilidade e negação social que parece que elas mesmas se renegam.
Prossegui viagem divagando...Será que vou tornar a vê-la e conseguir perguntar seu nome? Será que ela receberá uma mão amiga que a tirarara daquela invisibilidade social?
Mulher ...Mulher... Quem te deixou assim? Onde foi que tu se perdeste? Cadê seus sonhos? Cadê sua vaidade? Cadê sua dignidade? Quem roubou sua alma? Quem disse que você não tem valor? Quem fez você acreditar que a vida era só isso... Quem te machucou fisicamente e, sobretudo, quem machucou a sua alma?
Não sei! Meu dia ficou mais triste. Não consegui ouvir a sua história...
Tomara que um dia a gente se encontre e você esteja bem. Tomara que você não vire estatística nesta cidade caótica.
Sabe Ana, Luísa ou Maria, estou indo apressada para trabalhar...Perdoe- me por não ter mais tempo e tentar saber de você .
Quem sabe um dia terei mais coragem de ouvir a voz do coração !?
Validando então o que realmente importa, que é fazer diferença na vida de outras " Anas" como você. Ou será Carla? Não pude saber...
E assim a gente segue, um dia fazendo a diferença na vida do outro, em outros dias, nem tanto.
Que possamos ser melhores e enxergarmos com o coração ou pelo menos seguir tentando...
Beijo no coração!
" O Mundo não será destruído pelo mal, mas por aqueles que os olham e não fazem nada."
Albert Ainsten