De quem são as palavras?
Dois gigantes da escrita formal se avistam no passeio da Praça da Saudade e, de longe, cumprimentam-se com um sutil inclinar das cabeças. Se aproximam e, de repente, veem algo saltitando ali no chão entre um e outro.
Ambos olham na mesma direção simultaneamente e, antes do aperto de mãos convencional, o gigante mais novo se abaixa recolhendo ali do passeio público algumas palavras que estavam alvoroçadas como se a procura de um lugar importante para se encaixar. Talvez numa frase, num verso, sabe-se lá onde elas queriam entrar...
O gigante moço, chamado Antônio, já de posse das palavras serelepes, levanta-se, cumprimenta amistosamente o amigo Aurélio e, após um abraço efusivo, abre diante deste a mão cheia de vocábulos inquietos.
Então lhes pergunta:
__ São vossas?
E Aurélio, muito respeitosamente, responde-lhes:
__ Absolutamente! São suas!
Mas Antônio humildemente insiste:
__ Imagina Senhor! Eu apenas as encontrei aqui no passeio público, e como não são minhas, decerto só posso imaginar que elas o estão acompanhando nessa agradável caminhada.
Aurélio olha atentamente o garboso gigante da compilação vocabular e admirando-lhes a humildade e gentileza, responde:
__ De modo algum meu jovem! Se não são suas estas palavras, também a mim elas não pertencem pelo simples fato de que são livres e não são propriedade de ninguém. Entram onde cabem e saem quando são desnecessárias. Mas em sendo livres servem à qualquer um que requisite os seus préstimos literários.
O jovem dicionário olha mais uma vez para as palavras em sua mão direita e tenta argumentar, mas logo é interpelado novamente pelo velho amigo:
__ Por que as relacionas a mim? Vossa pessoa bem poderia reivindicá-las. Senão por havê-las criado, ao menos por tê-las apanhado do chão antes de mim.
__ Ora Mestre! Jamais faria isso!
__ Por que não? Quantas vezes já vimos fazerem isso? Por muito menos as pessoas se arvoram de donas das palavras. As recolhem das conversações e textos escritos, escrevem ou reformulam frases, observam ou alteram seus sentidos e saem por aí dizendo-se seus únicos donos.
__ Não posso fazer isso porque quando eu nasci as palavras já estavam aí no seio da comunicação oral e verbal. Como poderia eu tomá-las para mim agora? Ademais, salvo um ou outro neologismo, que também não invento mas apenas compilo e defino literal e figurativamente, nem posso dizer que tenho sido original naquilo que faço, quanto mais reivindicar a posse de qualquer uma das palavras que escrevo e descrevo.
E dizendo isso, enquanto é observado com admiração pelo Glossário veterano, Antônio abaixa-se e libera as palavras na calçada. Em seguida ergue-se e diz pausadamente:
__ Se não são de nenhum de nós dois, que fiquem onde estavam.
O Velho Buarque faz um aceno com a cabeça concordando e o jovem Houaiss então convida:
__ Que tal um café meu bom amigo?
Dando uns tapinhas amistosos nas costas do jovem sensato e brilhante, o velho dicionário de 1975 abre um sorriso de satisfação e, convite aceito, seguem juntos em direção à Confeitaria da Língua Portuguesa que fica na Esquina dos Lexicógrafos entre Camaragibe-AL e Rio de Janeiro/RJ.
Adriribeiro/@adri.poesias